terça-feira, 2 de março de 2010

Contos Artonianos #2



O Goblin e o Anão

Delrin Turgar abriu as janelas de sua casa e sentou-se em sua escrivaninha. Sentiu o belo frescor dos ventos da rua de Valkaria, teve bons pensamentos sobre a felicidade nas coisas simples como o a tranqüilidade de sua casa no bairro dos anões. Orou para Khalmyr por seus milagres e recebeu as bênçãos do deus da justiça e da ordem, que também era o deus dos anões, juntamente com Tenebra, a deusa das trevas e das criaturas que viviam sob a terra. Tinha todos os motivos para estar feliz, mas seu semblante de anão era carrancudo e sério. Membros dessa raça tendem a ser menos simpáticos e mais rabugentos que os humanos estavam acostumados. Muitos demoravam longos anos para confiar em alguém. Mas quando o faziam, eram aliados valorosos e leais. Pegou sua pena e molhou no tinteiro negro. Sobre um pergaminho, pôs-se a escrever longamente.
Recentemente ele havia recebido uma carta de seu amigo, um cardeal em Doherimm chamado Torak Ironmind que contava sobre como andava a vida no Reino dos Anões e na igreja de Khalmyr. Pedia também por informação sobre a religião do deus da justiça em Valkaria, sobre os rituais dos humanos e ofereceu conselhos sábios sobre como proceder na diplomacia.
Agora Delrin estava respondendo sua missiva com algum entusiasmo. Gostava de saber como andavam as coisas em Doherimm e na igreja de Khalmyr. Desde que decidiu sair da Montanha de Ferro – como era conhecido pelos humanos o reino dos anões – ele tinha poucas notícias de casa. Um tanto teimoso, ele achava que seu trabalho seria recompensado por Khalmyr quando espalhasse a ordem e a força das tradições por este mundo caótico. Vivendo na maior cidade dos humanos, rebeldes e ambiciosos, era uma boa forma de começar. Havia feito alguns contatos com a igreja de Khalmyr em Valkaria e fora bem recebido. Não demorou em mostrar que era um bom trabalhador e ganhou seu ouro para comprar uma casa no bairro dos anões.
Ao terminar a carta, decidiu saborear um pouco da cerveja anã que havia trazido de sua terra. Observava a rua por sua janela. Estava vazia e um tanto escura, o que não era um problema para quem pudesse enxergar no escuro como os anões. E o os goblins.
O anão franziu o cenho ao sentir que viu alguma coisa se mover ardilosamente pela rua, dobrando a esquina de sua casa.
***
O cheiro de urina empestava o ambiente, totalmente escuro. Várias criaturas agitavam-se. Mediam pouco mais de um metro, pele esverdeada com manchas diversas na cor marrom, olhos vermelhos, orelhas e dentes pontiagudos. Todos estavam sujos e trajavam roupas cor ocre, como um goblin padrão se vestia. Exceto um deles, o que se postava no meio. Ele tinha roupas marrons com um colete negro. Tinha um lenço amarrado na cabeça e sorria em demasia, contrastando com as zombarias e xingamentos dos outros.
- Bati.
Um chiado e algumas vaias seguiram ao comentário de Korn. Os outros reclamavam e o chamavam de ladrão. Ele jogou as cartas no chão mostrando seu jogo vencedor e recolheu as bolsas com parcas moedas de ouro. Zombava dos derrotados e erguia as mãos espalmadas numa paródia de sentimento de ofendido. As moedas eram umas de origem duvidosa, outras ganhas com trabalhos sujos ou subalternos. Mas Korn não ligava para nada disso. Só ligava para si e para o jogo. Vencia com propriedade, não precisava roubar para conseguir as poucas moedas que conseguira. Mas não se tratava do dinheiro em si. Ele era viciado em jogo, de qualquer tipo. Estava extasiado pela jogatina e agora só pensava em comemorar na próxima taverna com um bom odre de hidromel.
Quando notou uma tatuagem diferente no sovaco em um dos goblins.
- Você se tornou um bárbaro, Mogri?
- Não enche o saco, Korn. Vá embora encher sua cara.
- Não seja mau perdedor, essa tatuagem é muito feia, onde a fez?
Korn sorria e zombava dissimuladamente dessa vez. Ele era um goblin magro e cheio de dedos ossudos, mas não era tapado. Tinha conhecimento de algumas coisas que as pessoas normais não davam conta. Mogri o ignorou rindo com amargura e mudou de assunto, falando com os outros amigos sobre o jogo, amaldiçoando Nimb por seu azar.
Os goblins, seres que rastejavam na calada da noite e trocavam informações numa rede quase que secreta entre eles. Seus trabalhos subalternos conferiam ouvidos apurados que sua condição social de cidadão de segunda categoria aproveitava. Eram invisíveis e muitas intrigas, de muitos nobres, de muitos comerciantes, muitas pessoas conversavam e confiavam segredos na frente de uma destas criaturas ignorando sua existência. Mais de um nobre já fora chantageado por um goblin mais ambicioso.
Eles eram astutos e sua covardia lhes conferia um estranho sentimento de união entre os seus. Juntavam-se contra o povo alto, os civilizados que precisavam de alguém para limpar as latrinas. Eram tratados como lixos pelas pessoas comuns e como monstros por um viajante desinformado.
Korn, entretanto, tinha mais amigos que o de costume e ouvia muito durante suas noites na Taverna do Pombo Perneta da Praça, onde trabalhava como faxineiro pela madrugada. A hora em que Tenebra já dava sinais de fraqueza e era vencida pelo início do sol, da vitória de Azgher que trazia mais um dia e derramava seu calor sobre Arton. Korn era bastante informado. Obtinha informações de aventureiros diversos. Por isso sabia que aquela tatuagem significava perigo. Significava encrenca.
Talvez por pena de seu amigo ou pela pura curiosidade, Korn decidiu seguir Mogri pelas ruas, assim que o jogo acabou. Andando pela favela dos goblins, um amontoado de barracos pequenos divididos por esgoto a céu aberto e lixo espalhado por todo o lugar e sem iluminação alguma, Korn foi ficando aliviado quando notou que seu amigo Mogri se encaminhava para casa. Talvez a tatuagem não significasse nada, afinal. Mas logo percebera o engano. Dois sujeitos muito estranhos aguardavam Mogri em frente a seu barraco. Eram altos como humanos, corpulentos, trajando mantos e capuzes marrons pesados. Korn pode ver o focinho que brotava do capuz. Eram criaturas muito estranhas, pensava.
Resolveu pensar que nada disso era da sua conta. Iria para seu barraco dormir, pois estava demasiadamente assustado com o que vira durante a noite. Sentiu a leve brisa da madrugada afagar-lhe o rosto e quase podia sentir o conforto de sua cama de palha e madeira. Sorriu por um instante, quando ouviu algo logo provocou um grande desejo por ser surdo.
O tilintar dos tibares. Ele virou o rosto, escondido pela cobertura de um grande saco de lixo em meio a refeição de ratos, e viu que os dois homens lhe entregavam um saco de ouro e um pergaminho enrolado numa fita negra com o mesmo símbolo tatuado no sovaco de Mogri.

***

Um vento gélido contornou as esquinas das ruas do bairro dos anões. Delrin esgueirou-se pelas paredes de sua casa, do lado de fora. Estava atrapalhado, rezando à Khalmyr para não ser visto e pedindo perdão por usar métodos furtivos. Mas ele sabia que se aparecesse como um iluminado pela justiça durante aquele momento, nunca saberia o que estava acontecendo realmente. Ele teria que empunhar seu machado e haveria luta. E provavelmente algumas mortes. E isso Delrin queria evitar.
Ele notou, com sua visão privilegiada do escuro, dois homens encapuzados. Eram altos, de ombros largos. Vestiam mantos pesados, marrons e capuzes que impediam qualquer sinal de seus rostos. Eles pararam numa pequena praça e faziam menção de se separar. Mas pararam para trocar algumas palavras. Delrin sentiu curiosidade, mas achou um canto em que pudesse se acomodar para ouvir sua conversa.
- Lady Jasmira ficará contente. – começou um deles.
- Espero que por muito tempo. Mas será que aquele tal de Mogri é confiável? Afinal ele é um goblin.
- Não duvide da sabedoria da nossa líder, ela tem pacto com a Mãe da Noite.
Tenebra era a deusa das trevas, um culto proibido em Deheon e também era conhecida por Mãe da Noite por suas crias. Licantropos e mortos-vivos em geral. Interrompido pela mão do outro que tocou seu ombro, num gesto incisivo para parar de falar. A mão, fora do manto, revelou-se grossa e forte, com grandes pelos negros.
- Sinto cheiro de anão.
- Estamos num bairro de anões, esqueceu-se?
- Tem um deles por perto.
Os dois viraram seus rostos para a direção de Delrin. Ele estava com mantos clericais simples, com jóias no pescoço e braceletes cerimoniais, mas sem nenhuma armadura. Apesar disso, carregava seu machado por precaução. Era um machado formidável, de cabo de aço firme e as mais afiadas lâminas de Valkaria. Esse machado era um dos maiores bens dos anões, uma de suas melhores armas já criadas.
Os dois homens se aproximaram lentamente e seus olhos brilhavam em vermelho na escuridão. Logo, rosnaram em direção à Delrin. Ele estava descoberto. Agradecendo por ter terminado seu tempo de esgueira, se revelou com altivez. Delrin possuía olhos castanhos muito claros e barba de um castanho-avermelhado muito bonito, com tranças caprichadas e pomposas. Em sua cabeça possuía entradas generosas nos flancos da testa e suas rugas poderiam denunciar uma grande idade. Mas anões, mesmo quando jovens, pareciam velhos atarracados e taciturnos. Delrin mostrou seu semblante sério de inquisidor, exibindo seu machado anão, empunhado com as duas mãos.
- Eu sou Delrin Turgar, clérigo de Khalmyr. Rendam-se agora e revelem seus maliciosos planos para que tenham um julgamento e uma punição honrosa.
Sem pestanejar, os dois avançaram investindo em carga sobre o anão. Seus rostos agora estavam descobertos pela despreocupação em proteger suas identidades. Possuíam olhos vermelhos, focinho de lobos. Eram lobisomens. Adversários formidáveis, segundo os estudos religiosos de Delrin. Todavia, aqueles rostos denunciavam que eram licantropos do tipo bestial, apenas tinham traços animalescos aparentados com lobos. Não possuíam a força, a agilidade e a resistência incomum dos licantropos do tipo feral.
Os dois atacaram com suas mãos e unhas afiadas como garras. Delrin não teve tempo de se mover para desviar dos golpes e fora arranhado. Ignorou a dor aguda dos cortes porque eram muito superficiais. Girou seu machado num arco horizontal e cortou a mão de um deles. O outro assustou-se e se moveu para outro flanco do anão. O lobisomen com sangue que jorrava pelo chão, chiava de dor e xingava o anão em um dialeto estranho. Avançou com suas presas à mostra visando a jugular do clérigo de Khalmyr.
Delrin conseguiu desviar desse pretensioso golpe e usou seu machado como arma de concussão para atingir a cabeça de seu agressor. Ele uivou de dor e desabou no chão tonto. O outro aproveitou o momento e saltou sobre o anão agarrando e mordendo seu largo e massivo ombro. Delrin tentou se livrar, mas em vão. O lobisomen sobre ele não conseguiu, entretanto, move-lo do lugar. Segurando a cabeça do seu adversário com as duas mãos, o atirou para frente usando toda sua força. O machado agora jazia no chão. Uma boa oportunidade para o lobisomen sem sua mão. Com sua mão que restava, pegou o machado e brandiu tentando cortar a cabeça de Delrin.
Então se ouviu um zumbido de um projétil furtivo. Acertou o olho do lobisomen aleijado. O licantropo que sobrou e Delrin olharam para a direção escura e viram um goblin com uma arma de longa distância feita de madeira que atirava projéteis, uma besta. O goblin acabava de salvar a vida de Delrin e ele ficou confuso com o que aconteceu. Mas não tão confuso o suficiente para ficar paralisado. Saltou no chão e pegou seu machado. Rolou e levantou-se aos pés do lobisomen que havia sobrado. Com um golpe preciso do cabo de aço do machado atingiu as têmporas, Delrin acertou o seu agressor, que caiu desmaiado.
Goblin e anão se olharam. Um com um largo sorriso de quem acabara de conseguir um favor, o privilégio da dúvida, de conversar antes de ser acusado de bandido. O outro resmungado a desonra que era ser salvo por um membro de uma raça conhecidamente maligna e traiçoeira.
- Eu sou Korn, o seu salvador, mestre anão. Desejo conversar.
- Pois fale de onde você está. Não se aproxime muito.
- Eu salvei sua vida, se lhe quisesse algum mal, já teria feito.
- Não duvido, mas não é isso que me incomoda. É seu cheiro de goblin.
Fique onde está. O que você tem a ver com estes bestiais?
- Nada, eu acho. Um amigo meu os encontrou hoje há algumas horas e eu resolvi segui-los. Preocupo-me com meus amigos.
Korn se aproximava de Delrin falando com tons de zombaria. Não esperava que o anão lhe fosse amigável mesmo, mas sabia que não seria molestado. Sabia que ele era um clérigo de Khalmyr e possuía honra e lhe era justo uma chance de ser ouvido.
Delrin, por sua vez, fazia careta a cada passo do goblin, mas deixou de reclamar, mudando sua atenção para seus adversários estatelados no chão. Percebeu que eles nada carregavam nenhum objeto ou armas. Estavam ocultos e iriam para algum lugar. Pelo menos, um dos lobisomens estava vivo. O goblin havia matado o outro, o que não era uma surpresa para Delrin.
- Podia ter deixado o outro vivo, goblin.
- Meu nome é Korn. E você já deixou um vivo, não precisamos de dois
para tentar nos enrolar.
- Não se trata disso. Se trata de uma morte. Poderia ter sido evitada.
Estes dois têm de ser julgados.
- Foi em legítima defesa, mestre anão.
Korn sorriu com malícias guardando sua besta numa mochila que carregava nas costas. Se aproximou mais do corpo do lobisomen com o virote preso no olho. Arrancou o virote e o olho saiu junto. Ele achou a cena engraçada e achou mais engraçado ainda a expressão de nojo do anão.
Então, Korn achou uma tatuagem no peito do morimbundo. A mesma que seu amigo Mogri carregava. Uma estrela negra. Vendo isso, o anão levantou o antebraço do lobisomen que estava desmaiado, mostrando a estrela negra tatuada. Eles ficaram sérios por alguns instantes.
- A Sociedade da Noite Eterna. - Sussurou Delrin.
- Parece que meu amigo está muito encrencado.
- Eu sou Delrin Turgar. Clérigo de Khalmyr, o deus da justiça. Vou investigar sobre esse assunto com afinco. Se seu desejo por ajudar seu amigo é genuíno, será bem vindo a me ajudar.
Os dois se entre olharam, numa espécie de parceria improvável.

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