terça-feira, 30 de março de 2010

Contos Artonianos #6


A Masmorra no Bairro dos Anões, parte I

Muito antes.

Os anões são um povo de honra e lealdade. Tem como deus principal Khalmyr, o deus da justiça, embora nem sempre fosse assim. Há muitos séculos, o principal culto dos anões era Tenebra, a deusa das trevas e dos povos subterrâneos. Hoje em dia existe a crença de que ambos formaram os anões através de uma união divina. Heredrimm, como os anões conhecem Khalmyr, vem ganhando maior notoriedade entre os anões graças às influências bélicas – desde o Chamado as Armas, a guerra contra os trolls – e por conta dos dogmas que mais se encaixam com a ordem e as tradições. Ambos os valores amados pelos anões.

Delrin Turgar era o filho mais novo de uma tradicional família de ferreiros, membros da Guilda dos Ferreiros, uma das organizações mais influentes de Doherimm. Desde cedo ele foi ensinado como manda a tradição familiar: aprendendo o ofício da forja de metais. Em pouco tempo, Delrin demonstrou ser mais habilidoso que seu irmão mais velho, Falrin Turgar II. Entretanto, esse fato era sempre oculto graças às artimanhas de Falrin. Invejoso, ele persuadia Delrin de que sua família seria desonrada se o filho primogênito não fosse um exímio ferreiro. A tradição ditava que os primeiros filhos das famílias anões deveriam ser os melhores no ofício dedicado de cada clã e ele não queria que seus pais se entristecessem por essa diferença agora. Delrin nunca quis prejudicar seu irmão nem torna-lo menos digno. De bom coração, Delrin então deixou que suas forjas recebessem autoria de seu irmão mais velho.

Por muitos anos, Delrin foi sempre visto como um coadjuvante por sua família. Sempre deixado de lado, ficou ressentido quando viu seu irmão receber as glórias da medalha de honra da Guilda dos Ferreiros por suas forjas. Em seguida, Delrin tentou sabotar seu irmão na primeira forja em homenagem à Guilda, mas foi pego em flagrante. Delrin foi acusado por sua família de ter sido desleal e causou a imensa tristeza de seu pai Falrin Turgar. Tudo que ele queria evitar acabou acontecendo de qualquer jeito.

Deprimido, Delrin buscou consolo e a sabedoria de Khalmyr em seu maior templo de Doher, capital de Doherimm. Ele contou toda a verdade do que havia acontecido esses anos todos e recebeu conselhos do sacerdote. Percebeu que uma mentira, mesmo contada para aliviar a dor, causa sempre mais dor posteriormente. E que uma mentira sempre é traiçoeira e sempre irá se voltar contra ele. Delrin encontrou a paz que desejava e decidiu mandar uma carta para sua família, dizendo que iria permanecer na igreja por tempo indeterminado.

Logo, Delrin começou a mostrar seus talentos de armeiro, forjando armas e armaduras para a igreja de Khalmyr. Ganhou notoriedade por sua habilidade e perseverança. Ele era trabalhador e dedicado, demonstrando uma disciplina pétrea. Digna de um sacerdote do deus da ordem. Assim, Delrin foi convidado ao clericato. No inicio foi relutante, mas não se julgou no direito de negar o chamado divino. Estudou e praticou com as armas tradicionais de seu povo e, em poucos anos, de simples trabalhador armeiro da igreja se tornou em um clérigo de Khalmyr. Sua filosofia de fé dizia que o trabalho salvava as almas para um julgamento justo perante Khalmyr depois da morte.

Voltou para sua casa e percebeu que a tristeza não havia abandonado sua casa. Com o tempo, seus pais descobriram que Falrin era insatisfatório com a forja e ele não agüentou a mentira por muito tempo. Acabou revelando que suas obras na verdade eram de Delrin e que ele não merecia a medalha. Depois disso, foi embora sem deixar vestígios, largando a medalha sobre um machado de guerra, tradicional arma dos anões. Mas o clericato de Delrin poderia dar uma luz de felicidade aos seus pais. O orgulho do filho mais novo ser um clérigo de Khalmyr era por demais honroso e glorioso. Mas ainda assim, não ficaram felizes. O filho preferido era o primogênito Falrin e essa verdade não mudaria. Poucos anões mudavam ao longo de suas vidas.

Delrin pensou em deixar Doherimm e viajar pelo mundo em busca de seu lugar. Pensou em levar a justiça aos injustiçados, ajudar grupos de aventureiros com sua sabedoria e disciplina. Trabalhador, não pensou em abandonar a forja, por isso decidiu carregar seus equipamentos de artesão consigo. Quando notificou sua saída para a superfície uma carta havia chegado à casa dos pais. Era de Falrin. Ele havia entrado no clero de Tenebra. Seus pais ficaram felizes novamente. Essa foi a justificativa que faltava para concretizar o adeus de Delrin. Ele se foi sem se despedir dos pais, notificando por carta.

Hoje, início da noite.

Delrin nunca acreditou em acaso, como um bom clérigo de Khalmyr, acreditava na ordem e no destino. Enfrentando uma sociedade secreta em favor de Tenebra, o mesmo culto que seu irmão havia se tornado clérigo, percebeu que de alguma forma o seu passado nunca o abandonaria. O melhor jeito era enfrentá-lo com coragem e determinação. Temia em ver seu irmão envolvido na seita. Temia pelo pior, por ter de enfrentá-lo e entrega-lo à justiça de Deheon. Ele mexia em seu machado – o mesmo em que Falrin Turgar II deixou a medalha da Guilda dos Ferreiros – com pesar no olhar.

- É um bonito machado, amigão. – era Korn, enquanto mastigava um pedaço de pão duro, ainda na casa de Delrin antes de partirem para o bairro dos minotauros.

- Não fale com a boca cheia. É desagradável aos olhos de quem conversa.

- Não seja tão ranzinza. Fiz um elogio a sua arma. Não gosto de armas geralmente.

- Esta arma foi feita por mim.

- Puxa, você deve estar orgulhoso, amigão.

- Mas não estou. Ela trás recordações pesarosas.

- Mas isso é passado. Você deve se orgulhar de um objeto que você mesmo cria. Eu não crio nada, o que melhor sei fazer é jogar e ganhar alguns trocados. E você é abençoado por um deus fodão e faz coisas úteis por aí.

De alguma forma, aquela conversa improvável entre um anão e um goblin fez Delrin pensar no significado de concordar com Korn. Era estranho, mas gratificante saber que não era um anão preconceituoso.

***

No salão que mais parecia uma masmorra, Jasmira e o culto da Sociedade da Noite Eterna completavam o ritual. Gazat, o mais novo cão de guarda de Jasmira, aguardava parado ao seu lado como um poste. Seu grande machado em mãos ainda pingava com o sangue de oito cultistas mortos. Os membros da seita eram de variadas raças, anões, elfos, lobisomens e vampiros e nenhum humano realmente vivo. Naquela ocasião, a maioria era formada por lobisomens, pois o ritual era sobre a licantropia.

Visto pela maioria das sociedades como uma maldição de Tenebra, a licantropia era uma benção a quem adorasse a deusa das trevas. Aqueles que nasciam com a licantropia eram mais sagrados ainda. Recusados e caçados assim que descobertos, estes lobisomens vivam em fuga e encontravam, invariavelmente, conforto, abrigo e um lugar no culto à Tenebra. Existiam também aqueles que se transformavam pela infecção da mordida de outro lobisomem. Estes, quando sobreviviam ao encontro com estas feras da lua cheia, encontravam a solidão ou a exclusão como os lobisomens nativos. Ou então, buscavam a Mãe da Noite.

A Sociedade da Noite Eterna possuía grandes objetivos. Liderados por Jasmira, uma sacerdotisa de Tenebra de grande poder, buscavam honrar o nome da deusa das trevas fazendo rituais e tornando mais criaturas do dia em servos da noite, seja através do vampirismo, através da licantropia ou através da transformação em zumbis, esqueletos e outros mortos-vivos menores. Jamisra tinha como objetivo final, o fim de Azgher, sua destruição total, mergulhando toda Arton em trevas para que as criaturas da noite reinem soberanas. Para isso, uma série de rituais intrincados e complexos deveria ser feita e ela estava satisfeita de te concluído com sucesso o ritual dos lobisomens. Após colocar a jóia élfica sobre o prato de pedra enegrecida, queimar o incenso sobre os cálices que continham sangue de jovens mulheres virgens, o símbolo sagrado de Tenebra tornou-se mais negro, eliminando todo sentido de luz que ainda restava no ambiente. Mesmo aqueles que enxergavam no escuro naturalmente, como Jasmira e Gazat, ficaram cegos momentaneamente, guiados pelo sentimento de vazio que fazia com que sentissem um buraco em suas barrigas.

Um círculo abriu-se no chão em formato de pentagrama e de lá, emergiu diretamente do inferno, um anão e um lobisomem muito alto, de pêlos acinzentados e grossos, dentes anormalmente afiados, olhos de pura maldade. Seus músculos eram impressionantes, com muitas veias saltadas.

- Saudações, ó sacerdote anão. É com grande alegria que o congratulo pelo sucesso em vossa empreitada. – Jasmira sorria e sua voz parecia mais fina e ecoava com mais intensidade pelo salão.

- Falrin Turgar II é o meu nome, jovem sacerdotisa. Trago aquele que unirá o mundo dos vampiros e dos lobisomens, a união da força e da astúcia. Apresento-lhe o guerreiro destruidor dos impuros, Rengav Evol.

Rengav abriu sua bocarra e salivou em júbilo, acompanhado dos quatro cultistas que sobraram da matança do meio-orc. Seus caninos eram muito maiores e seu olhar era vermelho. Gazat sentiu seu coração palpitar. Não era medo, não era curiosidade. Era o verdadeiro instinto selvagem em seu interior que não fora controlado por Jasmira que tentava se soltar, alertando que contra aquela criatura, ele teria uma batalha muito dura e difícil. Gazat sentia a excitação do combate tentando liberta-lo do julgo de Jasmira.

***

domingo, 28 de março de 2010

Imortalidade.



Era uma noite fria e solitária. Chovia, mas o doce saber do puro líquido vindo dos céus se misturava com as salgadas lágrimas de um jovem inocente flagelado pelos jogos de Thyatis. Mas a mesma dura faca que abre feridas desnecessarias dá poder aos necessitados. Recostado em uma árvore, longe de todas as desatenções, um nobre homem se aproxima daquela criança, para e observa. O menino o ignora, nada mais importa.
- O que aconteceu meu jovem?
O menino ergue a fronte. O homem se depara com uma criança suja e miserável, um pobre coitado de cabelos bagunçados, face elameada e roupas em frangalhos. Seu destino. O menino se depara com um alto senhor, de cabelos longos, limpos, bem tratado, trajando uma bela vestimenta azul das quais apenas os grandes nobres podem trajar, e uma máscara prateada. Sua salvação.
- Eu... não sei... - respondeu o menino entre lágrimas e soluços
- Venha, um homem de verdade não pode ficar desse jeito... - disse o nobre enquanto o acolhia debaixo de sua capa para protegê-lo da chuva.
O homem se identificara como Charitas, o grande, um nobre que havia desistido de sua monótona vida de comandante da sociedade para ser um grande aventureiro, entitulando-se como a grande lenda viva. O menino não sabia seu próprio nome.
Deste momento em diante o menino passou a seguir Charitas, e com ele aprendeu a arte da esgrima, os perigos e vantagens da pólvora, os códigos de conduta de um homem de verdade, as máximas proezas possíveis de serem realizadas com o esforço físico bem treinado, e o menino servia como ponte entre os meros mortais que habitavam as cidades, trazendo as necessidades urgentes do povo ao conhecimento de Charitas, que sempre aparecia e livrava o povo de sua mácula.
Ao estar se socializando e coletando informações em uma nova cidadela, um homem rompe as fronteiras dos portões sobre um cavalo e sob seu grande ego. Ele desce do cavalo às gargalhadas e profere aos quatro cantos.
- EU MATEI CHARITAS!
Todos se estupefacem, o menino perde o chão.
Ao perceber o movimento em direção à floresta, o menino corre por um caminho alternativo até o pequeno acampamento onde se acomodavam e encontra o esfumaçante corpo de Charitas, caído ao chão, com suas carnes em estado cremado e suas roupas intactas. Um grito de desespero é abafado pela falta de fôlego. O responsável por toda sua história de vida desfalecido como um porco a ser devorado. Ao perceber movimentação próxima ao acampamento apenas uma idéia prevalece: "A identidade de Charitas nunca se revelará" e, ao retirar a máscara, como era de se esperar, seu rosto está igualmente cremado. Recolhendo suas roupas e os utensílios possíveis dentro de pouco tempo, o menino, que por jogos de Thyatis agora havia se feito um homem, some em meio a mata e deixa um corpo dsfigurado como prova da doente investida de algum porco que lutava contra o que era nobre e certo.
Semanas se passam, e a mesma cidadela se depara com uma frente invasora, já conhecida pelos mesmos. Motivo pelo qual um dia Charitas fora aclamado. Motivo pelo qual seria novamente.
Quando os miseráveis pilhavam e desferiam golpes em pessoas inocentes, um estouro. Um imundo a menos. Perplexão, todos procuram, ninguém acha, o medo começa a penetrar a mente dos imundos. Outro estouro. Mais um corpo no chão. Desespero entre os imundos e quando restavam quatro, com um barulho de capa ao vento e um borrão vermelho no ar, apenas restaram três. Não acreditaram no que viram, e ao se erguer, voltara Charitas, dentre os mortos para trazer a justiça novamente. Com mais alguns movimentos e algumas demonstrações de grande ímpeto, os imundos se deitaram em sono eterno. Charitas fora aclamado novamente, havia ressucitado por dentre os mortos e ao questionarem: "COMO É POSSÍVEL?", com sua máscara cor de prata refletindo a luz do sol ele responde:
- Enquanto houver injustiça, nenhum homem será capaz de interromper a ira de Charitas e enquanto houver esperança, nenhum homem poderá me repousar. E onde houver necessidade, lá eu estarei.
Então Charitas inicia sua jornada pelo continente, a fim de recuperar a honra de seu antecessor, espalhando suas façanhas aos quatro ventos e ajudando aqueles que precisam de paz em suas vidas.

terça-feira, 23 de março de 2010

Contos Artonianos #5


Contos Artonianos
Confrontos na Noite, parte II


Sangue espirrava nas paredes de alvenaria do salão. Mantos e capuzes negros moviam-se rapidamente como se dançassem num ritmo insano. Gazat estava no meio deles, despido de seu manto, apenas com sua armadura de couro que protegia seu torso. Girava seu machado grande freneticamente. Possuía toda sorte de cortes espalhados pelo corpo, mas resistia, ignorando a dor. Estava na Fúria Bárbara, um momento de insanidade em que o meio-orc desligava totalmente sua mente para concentrar-se na selvageria da matança.
Ele mesmo já pensara outras vezes em como sua consciência atrapalhava e era incomoda de vez enquando. Desde que se lembrava, ele sabia que havia um animal selvagem enjaulado dentro de si e que na verdade, ele vivia em uma prisão. Há muito ele já tinha entendido que saber quem ele era não importava. Ele sabia que quem ele era é o animal dentro de si, a fera ensandecida pela sede de sangue. Sua consciência era um castigo, uma punição dos deuses. Ele lamentava ter que conviver com ela. Mas adorava as batalhas. O confronto, a excitação de uma luta fazia emergir o verdadeiro Gazat. Sentia pena pela Fúria durar tão pouco durante um dia.
Naquela situação, ele não pensava, não distinguia o certo do errado. Via-se cercado de inimigos, como sempre vira durante toda sua vida. Como meio-orc, ele não teve a chance – talvez nem quisesse – de ter uma vida civilizada, uma chance de ser igual aos outros numa sociedade. Lembra-se de ter acordado sem memória, sem nome, sem história, em uma vila de Tollon, o Reino da Madeira. A partir dali, fora perseguido por homens que queriam matá-lo. Teve que matar a todos e gostou daquilo. Depois, sentiu fome e matou alguns animais para comer. Apenas para descobrir que pertenciam a outras pessoas e elas viam aos montes para caçá-lo. Durante muito tempo ele viveu aterrorizando lugares sem de fato querer. Até que entendeu o que ele era. Um homem feito para matar. Um animal feito homem para mostrar sua força para o mundo.
Aos poucos ele foi aprendendo a ver como as coisas funcionavam no mundo. Ele precisava de ouro para ter o que queria sem ter que matar. Não que ele não gostasse de matar, mas só queria matar quem demonstrasse ser tão forte quanto ele. Para ter ouro, ele se tornou mercenário. Vendia sua força para ter ouro, comida, mulheres. Até que fora procurado por um empregador muito diferente dos nobres e comerciantes empolados que estava acostumado. Era um goblin chamado Mogri.
- Preciso de seus serviços. Quero que mate um lobisomem para mim. Sabe como se parece um?
- Não. Ele é forte?
- Ele é muito forte. Tão forte que é capaz de destruir muros com as garras. Ele parece um cachorro, só que anda sobre as duas patas. Ele provavelmente usará um manto negro. Ele vai atacar a Vila Élfica hoje a noite para pegar uma jóia. Quero que você o mate e traga a jóia para mim. Certo?
- Certo. Quero dez barris de cerveja e cinco mulheres por isso.
- Tudo bem, meu caro, terá isso em ouro quando voltar.
Assim, ambos se despediram. O meio-orc foi até a Vila Élfica e conheceu os elfos. Eram ainda mais frágeis que os humanos. Mas alguns mexiam com magia e isso o fazia respeita-los um pouco. Ficou escondido numa moita perto do lago, aguardando. Quando viu o ataque, esperou o lobisomem sair da casa com as mãos e boca sujas de sangue. Carregava uma pedra brilhante que as pessoas costumavam chamar de jóias. Ele sorriu e saltou sobre o lobisomem.
A luta foi chata para Gazat. Com dois golpes de machado que nem sequer arrancaram algum membro deixaram o lobisomem no chão, sofrendo de dor. Gazat foi embora e deu a jóia para Mogri.
- Me prometeu luta. Me deve uma boa luta, goblin.
- Tudo bem, tudo bem! Vá a este lugar e você ganhará uma boa luta.
Gazat seguiu os conselhos de Mogri e foi a tal casebre abandonado, num bairro estranho onde as casas eram baixas, feitas de pedra. Encontrou um lobisomem poderoso nesse casebre que lhe foi um poderoso adversário. Depois de matar, Jasmira aplaudiu a força de Gazat e ofereceu uma recompensa ainda maior caso o ardiloso goblin Mogri que estava com a jóia que ela também queria fosse morto. O meio-orc sentiu-se usado, mas decidiu não ligar pra isso. Foi à favela dos goblins, matou Mogri e pegou a jóia élfica de novo. Quando foi entregar à Jasmira, percebeu quer fora enganado e que a recompensa seria se tornar num deles, um membro da Sociedade da Noite Eterna.

***

Até que ele abaixou seus braços e largou o machado no chão. Jasmira ria em júbilo. Dos doze cultistas que ali estavam, restavam apenas quatro. O resto estava morto jogado e com membros espalhados pelo chão. Gazat, enfim, cansou-se e sua Fúria acabou. Se durasse um pouco mais, talvez ninguém ali saísse vivo.
Jasmira se aproximou do bárbaro a ponto de desmaiar, pálido pela perda de sangue. Tocou-lhe o rosto e disse num sussurro:
- Gazat, agora você é meu guerreiro e fará tudo que eu mandar. Assim ordena Tenebra.
- Sim, minha senhora.
Um milagre de Tenebra fez Gazat ficar enfeitiçado. Outro milagre curou seus ferimentos e ele era o soldado perfeito para Jasmira. E recebeu ordens.

***

Áquila recebeu Delrin, Ferannia e Arthur na sala de estar. Por mais que Arthur protestasse, Delrin achou melhor que Korn não fosse visto com eles, pois era um goblin, raça que os minotauros mais desprezavam no mundo e seus diplomatas em Valkaria insistiam em tirar a cidadania deles para torná-los em escravos definitivos. Korn amaldiçoou sua sorte e foi embora dizendo que ficaria escondido e apareceria quando eles saíssem da casa de Áquila.
A sala onde estavam era feita de pedra polida, branca com quatro pilastras em cada canto. No centro havia um tapete vermelho ricamente adornado com detalhes artísticos. Havia uma mesa feita de mármore onde Áquila sentava na parede atrás havia um quadro de um minotauro em armadura de legionário.
Após as conversas iniciais puramente protocolares, onde Delrin exaltava a força de Áquila e seus antepassados e o minotauro exaltava o deus da justiça, em seu aspecto guerreiro na guerra que era justa, eles se sentiram confortáveis para conversar sobre os assuntos daquela quase madrugada. Ferannia, contrariando as previsões, não se sentia entediada. Pelo contrário, ela observava atentamente a conversa de ambos e ficou curiosa sobre as relações entre anões e minotauros. Eles eram, na verdade, bastante parecidos. Disciplinados, rígidos. Arthur ficava calado a maior parte do tempo, tentando aprender o máximo que pudesse com Delrin.
- Diga-me Delrin Turgar, filho de Falrin Turgar. O que o trás em minha casa nessa hora tão incomum?
- Peço desculpas pelo incômodo, mas este jovem guerreiro e esta donzela élfica têm uma missão que tomei para mim como justa. Uma jóia de valor inestimável para Ferannia Holimion fora roubada por um lobisomem, uma cria de Tenebra, a deusa das trevas e matou uma de suas amigas. Eu acredito que a justiça prevalecerá se o pertence de Ferannia seja recuperado e o assassino da donzela élfica seja devidamente punido.
- Concordo quando diz que é uma missão justa, sábio Delrin Turgar. Ficarei feliz em ajudar nessa empreitada. Se a donzela Ferannia quiser, terá toda a proteção de Áquila. – Era difícil distinguir expressões faciais dos minotauros e por isso era difícil entender o que pensavam. Ferannia conteve sua cara de insatisfação como um pássaro jovem que sofre do perigo de ser capturado.
- Na verdade, Áquila, o que precisamos é de informação. Delrin é um homem sábio e disse que suas sentinelas são bastante astutas e observam com atenção as ruas do bairro dos minotauros. Como sua casa é próxima ao bairro dos anões, provavelmente eles puderam ter visto alguma coisa lá também.
Era Arthur, tomando a dianteira da conversa, pois não sabia qual seria a posição de Delrin no que tange a possibilidade de Ferannia ter “proteção” de Áquila. Nas entrelinhas todos pensavam a mesma coisa: Proteção do mais fraco pelo mais forte. Era o dogma de Tauron mais famoso e que mais gerava discussões e tensão no Reinado com o reino de Tapista. O dogma que justificava as práticas escravistas dos minotauros. Isso era algo que Arthur não queria arriscar.
- Entendo, jovem humano. Vou perguntar ao chefe das minhas sentinelas sobre algo. Podem aguardar na sala de espera, sim?
Levantando-se, Delrin o acompanhou saindo da sala. Ferannia e Arthur foram para a sala de espera, que era menor e sem janelas. Um local que eles entendiam como sendo destinada para as visitas inconvenientes. O sorriso de Ferannia era um agradecimento e Arthur sentiu que não merecia toda aquela beleza. Corou um pouco e deu de ombros, um tanto sem graça.
- Era o meu dever.
- Você é um bom líder, Arthur Woodcastle Terceiro.
- Obrigado. Vamos resolver isso tudo, Ferannia.
- Confio em você.
Seguiu-se um silencio que incomodava um pouco. Vários minutos depois Delrin e Áquila apareceram. O anão estava satisfeito e contou que um das sentinelas viu um homem encapuzado que pingava sangue caminhando pelas ruas do bairro anão e entrou numa casa abandonada, de um anão que há muito morrera. Era Torak Braço de Aço, um sacerdote de Azgher, o deus do sol. Diziam que ele era um mentor de uma medusa e que ela era também uma sacerdotisa de Azgher.
Arthur se levantou e agradeceu a Áquila com expressão séria no rosto. O minotauro via ali coragem e ficou satisfeito. O grupo saiu da grande casa de Áquila e foram ao beco onde Korn se escondera. Nesse momento, Arthur não se surpreenderia se Korn ali não estivesse.
E não estava.

***

Korn sentou-se no espaço gramado que era um beco escuro, entre duas casas de pedra. O bairro dos minotauros possuía uma vista frontal da estátua colossal de Valkaria. Uma visão “sem graça” segundo Korn. Poucos minutos sentado foi o suficiente para ele entediar-se daquilo. Decidiu ensinar humildade ao minotauro Áquila. Primeiro, criou uma distração. Com uma besta disparou um tiro certeiro numa placa de madeira de uma taverna onde dizia “proibidos magos e goblins”. As duas sentinelas nos portões da casa de Áquila olharam aquilo e uma delas fora averiguar. O outro observava aos arredores com uma disciplina difícil de acreditar. Eles trajavam corseletes de couro endurecido, portavam lanças e escudos de madeira. Possuíam elmos que se adaptavam a seus chifres. Eram atentos o tempo todo.
Korn aproveitou o ponto cego da visão que o minotauro que fora averiguar e se aproximou até chegar noutro ponto escuro. Ali ele pôde ver o minotauro voltar a seu posto. Moveu-se com mais cautela e seguiu os passos da sentinela, um a um, a fim de parecer uma sombra, desaparecendo na própria sombra do minotauro que era muito maior que ele. Korn suava frio naquele momento. Qualquer deslize significava problemas. Talvez a morte.
Então ele conseguiu aproximar-se o suficiente da grade que cercava a casa de Áquila e saiu da sombra da sentinela para entrar na sombra do poste na esquina. Dali, ele saltou para a grade e depois pôr-se a escalar. Saltou o muro e correu sem fazer barulhos até uma janela próxima. Bisbilhotou e viu outra sentinela do lado de uma porta de ferro. Era muito grossa e tinha uma fechadura muito grande. Com certeza ali haveria de ter algo caro. Korn sorriu de orelha a orelha.
- Psiu.
O minotauro olhou fixamente para a janela e não viu nada. Olhou para os lados, demonstrando confusão. Ele se aproximou da janela então. Quando pôs a cabeça para fora, Korn estava ali deitado com a besta apontada para ele.
- Adeus, cara-de-boi.
Um tiro silencioso fora disparado antes que o som da garganta do minotauro saísse. O virote atravessou o queixo e encontrou o céu da boca. O minotauro caiu de bruços pesado. Aparentemente, nenhum barulho o suficiente para atrair atenção. Korn se deu ao luxo de comemorar um pouco e xingar a sentinela morta.
- Quem é o papai? Quem manda aqui? Boi metido!
Pulou por cima e entrou na casa de Áquila. Foi até a porta com pressa e sacou sua sacola que ele gostava de chamar de “mil e uma utilidades”. Ali tinha baralhos, chaves-mestras e grampos de variados tamanhos. Todo tipo de material de arrombamento. Sacou seu melhor grampo e começou a trabalhar.
- Que Hynnin me ajude.
E ajudou.
Com um clique, abriu a porta bem devagar e bem pouco, o suficiente para seu magro corpo passar. Uma vez dentro, a sala estava escura. Ele viu alguns baús e armas espalhadas em cada canto da sala, que era quadrangular. Sorriu e começou a abrir os baús.
Momentos depois, ele saiu dali satisfeito, escaldado. Trancou a porta, saltou a janela sobre o corpo e correu. Em tempo de ver seus amigos parados no beco olhando para os lados. Foi Ferannia que o viu primeiro.

***

- Muito bem. Achei que fosse ser pego pelas sentinelas.
- Fui me esconder noutro lugar porque aqui é fácil de me verem.
- Sei.
Os dois se miraram pos alguns segundos. Mas no fim, ela sorriu para ele. Ele sorriu para ela entendendo que tinha aprovação naquela situação.
Delrin olhou os dois e bufou sem paciência. Arthur temia que o anão pudesse interrogar Korn e acabasse descobrindo algo que Khalmyr desaprovasse. Algo que até ele mesmo desaprovasse. Sabia que Korn tinha métodos que ele considerava radicais, mas respeitava o amigo. E por isso não gostava de saber de muita coisa.
- Estejam prontos, agora iremos invadir uma casa abandonada. Provavelmente encontraremos uma porta secreta que nos levará a uma masmorra escondida. Ali teremos lobisomens e toda sorte de criaturas ligadas à Tenebra.
- Mortos-vivos como zumbis, esqueletos, vampiros, carniçais. São os mais comuns, jovem. Mas Khalmyr está com os justos. Quem for justo e honesto prevalecerá. – um olhar incisivo para Korn foi lançado pelo anão.
- Isso mesmo. Que vençam os justos e morram os injustos. – Korn mal sabia (ou queria) disfarçar o sarcasmo.
- Não tenho mais poder mágico por hoje. Preciso descansar por oito horas em média ou vocês precisam me dar uma arma para lutar.
- Não, menina. Você é uma mulher, não deve lutar. – Era Delrin.
- O que? Como ousa, anão? Eu posso lutar tão bem quanto um homem.
- Acalmem-se vocês dois. Delrin, ela tem razão. Não é por ser mulher que se saiba lutar menos. Mas Ferannia, você estudou magia, duvido que tenha tido tempo para aprender a manejar uma arma tão bem assim.
- Me dê um arco ou uma espada e veremos.
- Eu tenho um arco.
Korn revelou da escuridão, um arco longo adornado com símbolos élficos. Apesar de não ser mágico, era de qualidade invejável. Delrin olhou para o arco admirado e logo ficou vermelho de raiva.
- Você roubou de Áquila, seu ladrãozinho mentiroso!
- Você já viu minotauros usando arcos, amigão? Não seja tão pessimista comigo. Eu achei por aí. Eu juro por Khalmyr.
- Ora seu...
- Não é hora para isso. Se Korn roubou, irá devolver. O fato é que Ferannia não pode ir nessa empreitada desarmada ou morrerá. Delrin, seja razoável dessa vez.
O anão resmungou bastante. Ferannia fitou o arco e o segurou. Ficou em silêncio por longos minutos, enquanto os outros ficavam discutindo sobre honra, honestidade e roubos.
Súbito, ela fechou os olhos e começou a cantar. Sua bela voz era cristalina e silenciou a discussão. Todos admirados pela música. Realmente, o idioma élfico era muito belo e parecia poesia pura mesmo quando apenas falado. Ao final da canção Ferannia olhou para Korn e lhe deu um beijo na testa.
- Esta é uma canção élfica que está escrito nesse arco. Ele pertencia a um artista, um bardo chamado Leonnantalas que tinha um amor não correspondido. Obrigada, Korn.
Arthur e Delrin admiraram um pouco mais. Delrin não conseguia manter a boca fechada. Arthur sorriu para ela, maravilhado.
Korn ficou embasbacado por uns segundos.
- Viu só? Podemos ir agora?
O anão resmungou algumas palavras e deixou passar. Se aquele arco era élfico e estava com Áquila, significava uma coisa: escravidão. Delrin discordava dos métodos dos minotauros e resolveu conversar com Korn sobre roubos alheios, ainda que por uma causa justa, não era justificável. Mas conversaria depois.
O grupo partiu em marcha para o casebre abandonado no bairro dos anões.

terça-feira, 16 de março de 2010

O pecador.


Extremo sul de Yuden, Arton 1403.

Calor.

O soldado movia-se através da noite agachado, espreitando o vilarejo situado a 3 dias viagem de Warton, O quartel de Yuden. Seus homens, todos marcados pelo batismo de Keenn, aguardavam sob uma depressão, esperando a ordem – sua ordem. A noite não possuía qualquer lua, e o céu estava coberto de nuvens, por isso limpo de estrelas.

Era um belo inverno, um tempo delicioso.

Ainda sim, o calor era infernal, desconcertante...

Eric Stein teve um dos melhores professores da Academia Militar de Yuden. Seu nome era Stearc, um velho sacerdote de Keenn. Ele sempre lhe dizia que a armadura de batalha era um portal para Werra, o inferno de Keenn.

Stearc dizia que este inferno era mais quente que 20 infernos juntos – e Eric começara a provar a tese de seu respeitável professor.

À frente, a guarda do vilarejo mantinha-se em constante vigília. Eles sabiam que sua traição não seria esquecida e que, mais cedo ou mais tarde, o Leopardo caçaria.

Hank, um antigo e brilhante oficial de Yuden fora acusado de traição pela justiça de Yuden. Seu crime: atentar contra a religião do Estado e contra a coroa.

Movendo-se pela noite, Eric chega à depressão onde 100 yudenianos vestidos de couro e aço aguardavam.

“Está tudo pronto Verner. Investiremos direto, sem paredes, sem escudos. Ou abraçaremos Keenn, ou abraçaremos Ragnar.”

Verner, um jovem guerreiro de cabelo castanho e olhos afiados, olhava seu comandante – e não acreditava na loucura que ele dizia.

“Eric” Sussurrou Verner “Existem cerca de 370 homens guardando a vila. Eles tem 4 vezes mais que nós!”
Eric Stein abrira um sorriso. Verner estava certo, não havia chance de vitória com esses números; mas a cabeça de Eric não parava de funcionar desde que recebera esta missão. Chances, números, datas, horários. Tudo em sua cabeça, como uma maquina de guerra.

“É verdade, Verner.” Concordou Eric. “Mas você considera que lutemos contra os 370. Veja: existem cerca de 220 homens guardando o local agora. Onde estariam os outros 150?”
“Estes, Verner, estão dormindo, em cima de suas porcas traidoras, e tão bêbados que são incapazes de manter a porra do equilíbrio. Estamos no inverno não é? Consigo sentir o cheiro do hidromel daqui. Aqueles 220 já tomaram uma boa quantidade de álcool pra agüentar o frio aqui fora. O resto já tomou quantidade suficiente para esquecer ate mesmo seu nome sujo.”

Verner não tinha levado em conta este detalhe. Na verdade, não esperava que Hank pudesse dar deslizes. Se bem que, isso não era um deslize, mas uma necessidade. Ainda sim, as chances eram muito pequenas.

Então, Eric continuou:

“Ryce levará 20 homens para o flanco esquerdo da vila. Gestraint levara mais 20 para o direito. Investiremos com 60, como disse, sem paredes, sem escudos. Atacaremos na noite, de surpresa. Os 220 bêbados tentarão se defender. Eles vão nos rodear, nos cercar. Estarão confiantes numa vitória fácil. E estarão confiantes nos seus outros companheiros, que acordarão para a carnificina. Ai entra Ryce e Gestraint. Eles interceptarão aqueles porcos traidores, e depois, junto deles, flanquearemos os bastardos.”
“Está de noite Verner, e eles estão bêbados, e estão frios. Verão que seus aliados estão lhes matando, mas na verdade seus aliados já estarão mortos a muito tempo. Com isso, haverá luta entre eles. O caos reinara, e nele seremos soberanos. Só precisamos resistir.”

Verner sorria a cada palavra, parecia quase miraculoso, mas Eric tinha toda a razão. Havia chance de vitória.

“Então Verner, Keenn ou Ragnar?” Eric sorriu.

Na escuridão, uma escolha tinha sido feita.
E o deus da guerra havia escutado.
Ryce e Gestraint começaram uma corrida frenética. Moviam-se com armaduras leves, não portavam escudos, apenas lança, machado e espada.

Eric levava os seus num ritmo de caminhada, mas um pouco lenta.

10 passos – a guarda bocejava;
20 passos – uma garrafa de cerveja fora trocada;
30 passos – olhares aterrorizados;

Os pássaros nortunos voaram pra longe. Gritos de guerra rasgaram o silencio sepulcral daquela noite. 60 soldados, 60 yudenianos investiram com aço, ferro e berros.

Eric corria à frente, mais adiantado que os demais. Ele deveria ser o primeiro a entrar em combate, e o ultimo a sair. O som da armadura de batalha ao correr era como se fosse uma música. O peso dela era grande, mas suas pernas agüentavam – elas foram feitas pra isso.

Sua visão indicava, pelo bruxulear das tochas, homens tentando montar uma parede a tempo de conter a investida. Sua mente explodia em cálculos. Via cada escudo sendo organizado, unido. Tudo era muito bem feito, e tudo indicava que Hank estava ali, tentando organizar os desgraçados.

Hank deveria morrer antes de Ryce e Gestraint terminar o serviço.

Então choque. Um apenas.

Eric sacou a espada das costas, deu base com o pé esquerdo e girou a arma com toda a força. A espada bastarda encontrou o escudo de um soldado com muitos verões acumulados. Quebrou-o e foi de encontro ao pescoço, rasgando-o.

O mesmo homem, antes de morrer, tentara um contragolpe. Sua lança raspou na armadura de Eric, inofensiva. Seu companheiro da direita acertaria Eric, mas uma lança arremessada terminou qualquer pretensão. O da esquerda conseguiu acertar um golpe fraco no flanco esquerdo de Eric.

Dor. Eric, puro reflexos, agarrou a mão deste. Puxou-a até que ambos estivessem cara a cara, e aproveitando-se do ultimo movimento, trespassou-o. Dentes trincados, pura raiva. Olhou pra frente – os 30 homens estavam apavorados. Conseguira ouvir um alarme, o que significaria que os 190 logo estariam aqui.

Então, mais choques. Então a carnificina brutal e lasciva. Eric lutava brutalmente. Sua espada só atacava, rasgando e perfurando por todos os lados. Ela implorava, exigia por sangue – cantava sua música.

A canção da Espada.

Eric ouvia seus batimentos, que marcavam cada golpe, cada movimento, cada delírio, cada morte. E deixou-se levar pela canção.

Sua armadura recebia todos os golpes, todos os tormentos. E ouvir este som era uma satisfação quase lasciva. Enquanto o ferreiro forja a armadura à marteladas, os inimigos forjam a alma do guerreiro massacrando sua proteção. Essa é e sempre será o dogma de todo guerreiro. Eric crescia, e sabia disso.

Uma lança havia soltado a ombreira esquerda, causando danos aos ombros. Um
Escudo acertara-lhe o rosto, retirando o elmo, e jogando Eric ao chão. Ele levantou somente para receber mais dois golpes. Um deles é defendido por Eric, que levantou a espada preparando-se para o golpe mortal. O outro é defendido por Verner, que joga o oponente ao chão, para a morte certa.

O campo de batalha movia-se de acordo com os batimentos de Eric. Um machado foi arremessado em sua direção, acertando a parte direita de seu peitoral. O mesmo que arremessou a arma, corria em sua direção. Era o único dos desgraçados que portava uma armadura de batalha. Era Hank.

Ele investiu, saltou com lança em riste, pronta, mortal, fatídica.

Eric riu daquilo. Com a mão esquerda, agarrou a lança, tirando-a de sua trajetória. Girou a espada com a mão direita e cravou-a na perna de Hank, por debaixo do escudo e completou o movimento com a perna, deixando Hank cair em baixo do yudeniano, a sua mercê.

Hank era velho, era lento e estava bêbado. Eric pegou a adaga da bota – “Porco imundo.” E cravou em sua garganta, num movimento único e metódico. – “Você luta como um porco” cuspe. – “Morrerá como um”.

Então, dor.

Inimaginável, indescritível. Uma lança penetrou fundo no aço da barriga, viajou por ferro, carne, sangue e osso. Eric urrou de dor, e seu coração bateu cada vez mais rápido.

Girou a bastarda, cortou a cabeça de seu agressor. Uma onda de sangue varreu-lhe a face, e o bruxulear das chamas agora era vermelho. O céu era vermelho sangue, e sua fúria era impulsionada pelo desejo de sangue.

“Werra”.

Muito embora a surpresa do ataque yudeniano, eles agora estavam cercados, e cada um lutava com 4 ou 3. Verner estava ferido na perna, e andava com dificuldade.

Eric estava gravemente ferido, e cego de ódio.

Mas como previsto, houve o flanco. Ryce e Gestraint chegaram na hora calculada, e o terror fora instaurado nos defensores.

A noite terminara; Keenn havia alimentado Alihanna. Corvos fariam seu trabalho, e o solo drenaria o sangue.

Dos 100, morreram 40. Agora a vila estava sem defesa, as mulheres já começavam a gritar.

Estava na hora do espólio. E ele era sempre doce.

Um coração de predador, não conhece o remorso.
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Algum lugar do Reinado, Arton 1405.
Tempos glóriosos. Qualquer guerreiro desejaria aquilo. Mas Eric, em especial, vagava sozinho em uma estrada qualquer. Ele perdera honra, titulos. Perdera sua fe.
Tudo isso com apenas um soco, uma queda...
Ele era predador, e conhecera o remorso.
E soube que o remorso era a pior das dores.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Contos Artonianos #4


Confrontos na Noite, parte I

A Sociedade da Noite Eterna recebia mais um de seus cultistas naquela noite refrescante do verão de Valkaria. O salão em que acontecia a cerimônia estava escuro, como era de se esperar. Tenebra, a deusa das trevas, odiava Azgher, o deus-sol e toda sua emanação de calor e luz. O salão era feito de pedra de alvenaria, bem simétrico. Pela estrutura, parecia ser obra anã. As pilastras sustentavam um teto bem alto. O local parecia uma caverna escura.

Entretanto, todos ali viam com clareza preta e branca tudo o que acontecia. No norte da escura sala havia uma mesa de mármore polido e bem cuidado. Sobre a mesa, apetrechos religiosos como incenso, cálices, uma pequena estatueta de uma estrela negra e um prato feito de pedra escurecida. Atrás dessa mesa de cerimônias, estava a eterna bela e jovem Jasmira, a vampira clériga de Tenebra e líder da Sociedade da Noite Eterna.

Ela observou com parcimônia a aproximação de seu novo lacaio. Outras criaturas vestidas com pesados mantos e capuzes negros faziam duas filas paralelas em frente à mesa de mármore. Eles, com seus olhos vermelhos e malignos observavam a entrada do novo cultista. Alguns sorriam atrás do capuz, com abafados sons de risada nervosa. Outros rangiam os dentes em uma breve demonstração de raiva branda. Outros o ignoravam solenemente. Mas em comum tinham a raça. Nenhum era humano.

Ele se curvou ao atravessar a parede de olhares. Frente ao símbolo sagrado de Tenebra, a estrela negra, ele ergueu seus olhos amarelados em sua direção.

- Trouxe a pedra brilhante que prometi. Agora me dê minha recompensa, mulher. – ele era rude e de palavras simples.

- Erga-se, Gazat Alma das Trevas. És bem vindo e que a escuridão envolva seu coração. Deposite a jóia élfica sobre o prato. Receba a recompensa depois.

Os olhos de Jasmira iluminavam-se sobrenaturalmente com satisfação e seu sorriso discreto sugeria crueldade. Gazat era um meio-orc e seus olhos amarelados faiscavam violência. Ele colocou sem modos afetados a jóia élfica sobre a mesa e mostrou um sorriso sarcástico à Jasmira. Ela o olhava como quem não havia entendido o gesto.

- Pedi que colocasse sobre a mesa, fera das trevas.

- E eu pedi minha recompensa.

- Não ouse testar a paciência de uma sacerdotisa da noite, fera.

- Não confio em você, sacerdotisa.

Jasmira sorriu mostrando suas presas vampíricas. Havia um tom de satisfação abafado que homens como Gazat jamais perceberiam a sutileza. Eles estavam se encarado, testando sua força contra o outro. Gazat com seu porte intimidador, mesmo que escondido sob os mantos negros e pesados, ele ainda era muito alto e muito largo. Em suas costas estava preso, sem pudor, um machado grande de duas lâminas poderosas com as marcas de quem já bebeu muito sangue. Jasmira exibia sua sensualidade convidativa, mas visivelmente perigosa. Era um convite à perdição explícito que, ao mesmo tempo demonstrava perigo, não dava chances à vítima de escolher evitar. Mediam-se por segundos quando Gazat cedeu.

- Não me importo com a pedra brilhante.

Ele colocou a jóia élfica sobre o prato e depois deu uma espiada nos outros cultistas, aguardando por uma traição.

- Não sou uma sacerdotisa negra, Gazat. Não espere uma apunhalada pelas costas. Espere a recompensa de Tenebra, a Mãe da Noite. Ela abençoa todas as criaturas da noite como eu e como você em breve será.

Gazat não pareceu entender muito bem o que escutou. Mas estava acostumado a não entender a maioria das coisas que lhe falavam, então já não se importava mais. Ele avançou sobre a mesa com suas duas mãos e alcançou a aproximação do hálito de Jasmira.

- Não brinque comigo, mulher. Eu posso devorar você aqui e agora. Me dê a recompensa logo.

Ela sorriu com o gesto brusco de Gazat e com sua delicada mão fez com que outros cultistas (que haviam dado passos de susto em direção à Jasmira) não se aproximassem. Ela detinha o controle da situação. Sempre o detivera. Jasmira acariciou o rosto de Gazat que se sentiu totalmente estranho. Ele não era acostumado ao afeto, sempre lidou com a vida de forma violenta. Ficou desorientado com o gesto incomum. Geralmente as pessoas se assustavam com aquela intimidação. Então ele sentiu uma paralisia quase que voluntária. Não se moveu, não queria se mover, quando Jasmira aproximou seu rosto ao dele e beijou-lhe o rosto. Ele estava totalmente envolvido e percebeu tarde demais o que estava acontecendo. Ela o mordeu no pescoço com suas presas. Um filete de sangue escorreu pelo delicado queixo de Jasmira.

Então ele fechou o punho e enriqueceu os músculos. Houve um palpitar maior do coração.

Seus olhos se abriram sem pupila e toda sorte de rugas de expressão ocuparam o rosto de Gazat. Sua testa estava totalmente franzida, suas veias estavam salientes. Jasmira teve que controlar o sangue que saiu mais fartamente da mordida de suas presas. Seus músculos cresceram e se tornaram mais duros que pedra. Gazat abriu uma boca improvável, cheia de dentes e baba. Um urro soltou-se violentamente de sua garganta quando as pupilas, agora totalmente vermelhas, voltaram. Era a Fúria.

***

- Isso é realmente necessário, mestre anão?

Arthur Woodcastle III estava um pouco emburrado, de braços cruzados e encostado na parede da casa de Delrin Turgar. O anão verificava alguns livros enquanto Ferannia Holimion e Korn bebericavam um pouco de chá anão. Ela fazia algumas caretas a cada gole, pois era uma bebida muito amarga pra ele. Korn adorava o que bebia. Era raro ele reclamar de bebida ou comida, pois era raro ele a ter em fartura.

- Não se apresse tanto, jovem Arthur. A pressa é a inimiga da perfeição. Se sairmos agora sem eu me preparar, nossa chance de sucesso nessa empreitada será mínima.

- Você já está com sua armadura e escudo para não se ferir, sua arma para fazer os inimigos sangrarem e seu símbolo sagrado para Khalmyr nos ajudar com seus milagres. Não precisa mais do que isso.

Ferannia demonstrou um sorrisinho e disse que o anão era um sacerdote metódico, precisava seguir certas ações para manter uma coerência em sua mente para que não se perdesse. Era algo típico de quem tinha pouca criatividade. Apesar disso, gostava de sua dedicação aos livros e estudos, dizia que Tanna-Toh também olhava para os estudiosos metódicos. Em resposta, Delrin apenas ergueu uma sobrancelha. Estava disposto a ignorar os comentários que considerava tolo da elfa.

Korn ignorava o ambiente e bebia e mordia pedaços de pão achando que estava banqueteando. Falou com a boca cheia para Arthur não se preocupar, pois “a noite era uma criança” e os lobisomems cheiravam tão mal que assustavam os animais. Não seria difícil acha-los.

- Aqui está. Pronto. Vamos.

Delrin carregava um pergaminho longo e enrolado. Colocou preso a um compartimento feito para guardar pergaminhos preso à cintura como um cinto.

O clérigo de Khalmyr tinha uma idéia por onde começar. O bairro dos minotauros era vizinho ao dos anões e ele sabia que os sentinelas de lá eram mais perspicazes. Korn sempre se assustava com a idéia de haver um bairro de minotauros com sentinelas minotauros próprios. Como um bairro com sua própria legislação. Mas ao contrário dos tamuranianos – que possuíam um daymio, um sub-regente – os minotauros escravizavam e tinham poder legal para tal. Ferannia protestou com sarcasmo sobre a necessidade de irem ao bairro e o anão finalmente perdeu a paciência.

- Escute aqui, jovenzinha. Esta é a decisão certa. Os minotauros são um povo honrado e justo, não irão lhes molestar. Se preferirem, eu falarei com os sentinelas com a autoridade de sacerdote da justiça.

Arthur ficou entre os dois, antes que Ferannia reclamasse novamente e a discussão nunca teria fim. Ele disse que era melhor seguir o anão que sabia melhor do lugar, conhecia as pessoas e era respeitado como clérigo na vizinhança. Korn concordou com Arthur.

- Isso mesmo. Basta pro meu amigão aqui mostrar que é celibato que vão deixar passar.

Delrin resmungou e deu um tapa leve na nuca do goblin, que soltou um risinho satisfeito de sua piada bem sucedida. Pensava em contar para seus amigos que não acreditarão que fez amizade com um anão. Ferannia suspirou e deu de ombros.

- Se alguém encostar em mim, irá virar um sapo.

- Melhor se fosse um boi. – era Korn passando dos limites.

- Chega, pessoal. Delrin, por favor, adiante. Armas guardadas, por favor. Não queremos chamar atenção dos súditos do Imperador-Rei e nem de sua milícia.

Era um pouco da desvantagem de um grupo tão multirracial: chamava muito atenção de que era de fato aventureiros e tinham diferenças históricas muito marcadas. Anões e elfos tinham uma rivalidade, apesar de nunca guerrearem por isso. Era uma rivalidade marcada pelo modo de ver a vida. Os anões eram teimosos e confiavam no cotidiano. Os elfos eram inconstantes e eram criativos espontâneos. Já os goblins eram odiados por todos, sendo vistos como um pouco mais que monstros pelas pessoas normais. Os goblins civilizados eram ignorados, escorraçados e não tinham senso de coragem ou de dignidade. Elfos tinham uma desavença histórica, foi muito difícil para os exilados de Arton-Sul se acostumarem a verem goblins limpando as latrinas, sendo vistos como súditos.

Apesar de tudo, Ferannia via Delrin como um estudioso. Devota de Tanna-Toh, curiosa por natureza, sabia como evitar um pouco a sua intolerância contra a mente fechada do anão. Delrin, por sua vez, via Ferannia como uma elfa mimada, assim como via todos os elfos. Ele dava valor ao sucesso pelo trabalho e a salvação da alma pelo trabalho justo e honesto. Porém, era justo dar a Ferannia uma chance de redenção, de convencê-la de outros meios de encarar a vida, meios mais seguros. Korn era visto com desprezo por Ferannia, era ignorado a maior parte do tempo por Delrin, mas este sabia que tinha uma dívida de gratidão e que Korn, apesar de goblin, era mais corajoso que os de sua raça, apesar dele não saber se é impulsionado pela ganância ou curiosidade ou bondade enterrada no fundo de sua alma. Korn gostava de zombar e se divertir à custa dos outros e via Delrin como alvo perfeito. Ele evitava zombar de Ferannia por pedido de Arthur, que por medo, temia que ele falasse sobre Lenórienn e perdesse a presença da elfa. Ele gostava de Arthur genuinamente, era um humano que o tratava como igual, o único que fazia isso. E talvez por isso não gostasse muito de Ferannia.

Arthur via o grupo como sua chance de gravar seu nome na história de Arton como um grande herói. Era amigo de longa data de Korn e sempre soube que ele o seguiria quando surgisse a oportunidade. Encontrou no anão, um homem sábio que pudesse lhe aconselhar sobre as coisas certas. Ferannia era uma conjuradora, provavelmente maga como sua mãe fora. E sua beleza era, no fundo, o grande motivo de sua admiração. Arthur sentia que gostava da elfa. Mas não sabia como se aproximar de um ser que tinha séculos de vida. E detestava por isso a forma infantil que ela o tratava.

- Vi alguma coisa.

Era Korn. Ele tinha olhos apurados e, na escuridão que era o bairro dos anões, apenas ele e Delrin enxergavam realmente bem. Arthur achava que era melhor andar às escuras para não chamar atenção. Todos ficaram estáticos, sem saber o que fazer ou se confiar no goblin. Arthur viu a hesitação do grupo sussurrou.

- Peguem suas armas e façam um triângulo. Ferannia no meio, Korn na retaguarda. Eu e Delrin à frente.

Mas havia um silêncio visceral. Nem o som do vento podia ser ouvido. Naquela altura do bairro, as casas estavam mais afastadas uma da outra e havia uma pequena praça onde havia algumas estátuas de anões homenageados pelo povo de Valkaria. Súbito, Delrin e Korn viram criaturas se movendo lentamente pela noite. Suas silhuetas sugeriam humanóides que capengavam e não faziam nenhum barulho. Porém Delrin sabia o que eram. Com a carne em decomposição e parcialmente consumida pelos vermes, eles vestiam farrapos e um enorme e pesado cheiro de morte pairava ao redor.

- Por Khalmyr! São zumbis, um tipo de mortos-vivos! Não adianta conversar com estes. Garoto, você não conseguirá lutar sem luz.

Então o sacerdote de Khalmyr ergueu seu símbolo sagrado que era um amuleto que estava preso em volta de seu pescoço, debaixo da armadura de talas.

- Khalmyr, que sua justiça prevaleça sobre aqueles que já foram e estão ilegalmente no mundo dos vivos!

Uma luz branca emanou do amuleto, erguido por Delrin, assim que as palavras do anão terminaram. Os zumbis puderam ser vistos por Arthur e Ferannia. Não eram nada agradáveis de ver. Viam dois deles serem envolvidos por chamas brancas que os consumiram imediatamente, levando seus corpos à destruição total. Mas haviam outros três que caminhavam sobre os aventureiros, pois não entraram na área da luz branca de Khalmyr.

- Preparem-se!

Arthur deu um passo curto à diante, posicionando-se com sua espada bastarda com as duas mãos. Korn sacou sua besta leve somente agora, assustado. Suas pernas tremiam pela visão de homens que deveriam estar mortos, inertes. Ferannia ergueu as mãos e gesticulou pronunciando palavras antigas e poderosas. Um projétil faiscante de energia esverdeada surgiu e disparou em direção a um zumbi que cambaleou, mas continuou seu movimento capenga.

Os três zumbis restantes chegaram e ameaçaram os aventureiros com suas mãos e bocas com queixos pendentes. O cheiro incomodava a todos, exceto Korn. Arthur aproveitou a aproximação de um e desferiu um golpe balanceado com sua espada e cortou uma criatura. Ela, entretanto, já não precisava mais do corpo inteiro para lutar e continuou sua ação atacando o jovem guerreiro. Porém, a armadura de Arthur o protegeu. Outros dois zumbis se aproximaram também, mas eles eram muito lentos e Delrin aproveitou e tomou a dianteira novamente.

- Khalmyr, que sua justiça prevaleça!

A luz brilhante do símbolo sagrado de Khalmyr brilhou mais forte ainda. A balança sob a espada brilhou intensamente iluminando quase toda a rua. Os três zumbis sucumbiram ao temor do deus da justiça e ameaçaram fugir em terror.

Korn deu um tiro com sua besta e o virote cravou na carne podre de um deles. Ferannia disparou outro de seu projétil mágico, no mesmo zumbi de antes, mas não o impediu em sua fuga. Arthur avançou sobre o zumbi com o corte de espada e golpeou num arco vertical, arrasando as costas da criatura. Ela caiu destruída. Delrin era um sacerdote da justiça e a existência de mortos-vivos era vista como profanadora. O bairro dos anões estava profanado com aquelas criaturas que precisavam ser destruídas. Ele avançou sobre o zumbi com o virote cravado e desferiu um poderoso golpe com seu machado anão fazendo a criatura descansar inerte no chão.

O último zumbi continuou a fugir até encontrar uma parede. Ele se virou contra os aventureiros, inerte com seus braços erguidos em ameaça. Ferannia, então, olhou para os outros dando de ombros. Arthur correu em direção do zumbi e o destruiu com sua espada bastarda.

- Minhas magias acabaram. – foi sua explicação aos demais. Korn deu um risinho sarcástico, se afastando dela, indo à direção a Arthur.

- Parece que falta um pouco de fé aos elfos, sem querer ser rude. – Disse Delrin.

- Khalmyr é um deus poderoso e abençoa os anões. Não posso dizer o mesmo da criadora dos elfos. – um tom melancólico na voz de Ferannia fez o anão sentir-se arrependido de ter comentado. Quis confortá-la pedindo desculpas, mas não sabia lidar com aquelas emoções que julgava élficas demais.

Arthur sorria pela derrota de seus adversários. Korn o cutucou e apontou para Ferannia. Ela tinha o rosto fechado, austero, olhar vazio para baixo. Antes que ele fosse perguntar o que acontecia e começar a bajulação, Korn o interrompeu.

- Deixe-a pensar sozinha. Preste atenção na sua missão. Devemos estar próximos de algum lugar importante para termos encontrado essas criaturas horríveis. São mais feios que Mogri! – Sorriu satisfeito.

Com um “vamos continuar”, Arthur reergueu os ânimos novamente de todos. Com Delrin à frente, chegaram ao bairro dos minotauros.

Valkaria era uma cidade que amedrontava quem não estava acostumada a grandes centros urbanos. Valkaria não parecia ser uma cidade de uma nação, mas uma cidade de todas. Cada bairro possuía um tom de estrangeiro que se adequava à realidade daqueles que não eram humanos. O bairro dos minotauros era feito por ruas tortuosas, casebres feitos de pedra polida com pilares em suas entradas. Os mais abastados tinham jardins grandiosos e guardas vigilantes. Os minotauros eram criaturas arrogantes e orgulhosas de sua nação, Tapista. Eram um povo forte, resistente, escolhidos de Tauron, o deus da força e da coragem. Virtudes que definiam o minotauro padrão. Entretanto, os minotauros eram escravistas. Devido a inexistência de minotauros fêmeas, eles tinham que se reproduzir com fêmeas humanas ou meio-elfas para a reprodução. O filho, quando macho, era minotauro. Quando fêmea, pertencia à raça da mãe. Tapista, mesmo com os escravos, era tolerada no Reinado. Para a insatisfação de muitos. Os anões e os minotauros viam-se com respeito, cada um em sua esfera de influência.

Delrin mantinha boas relações com alguns minotauros e não achava nada demais eles possuírem guardas, sentinelas próprias, independentes da milícia local da cidade. Assim que pisaram no bairro, foram interrompidos por minotauros com lanças e escudos.

- Não podem transitar a esta hora neste bairro.

- Ora, essa cidade não é de vocês seus... – Ferannia ameaçava a boa vizinhança. Mas fora interrompida por Delrin.

- Eu sou Delrin Turgar, clérigo de Khalmyr, o deus da justiça, meus bons soldados. Reconheço as leis locais e as exceções delas para vocês, nobres moradores de Valkaria. Entretanto, venho aqui com um motivo nobre e requisito também uma exceção.

O anão retirou de seu cinto um pergaminho e entregou a um dos guardas. Ele abriu e leu. Se não fosse por um anão, provavelmente nem leria e os expulsaria de qualquer forma.

- Muito bem, podem passar.

Todos passaram surpresos e olhando para o anão.

- Sabia que meu amigão era influente pra caramba! Delrin, preciso dessa sua influência lá num prostíbulo e...

- Cale-se, jovem Korn. Não ouse testar minha paciência.

Arthur acalmou o anão e perguntou como fizera aquilo. Delrin respondeu que era uma carta de um amigo, Áquila, morador de Valkaria há um ano. Ele entregou à Delrin uma carta que permitia que circulasse livremente pelo bairro dos minotauros sem interferências. Encurtar a burocracia para que as igrejas dos anões a dos minotauros pudessem dialogar. Ferannia achava um absurdo os humanos permitirem aquilo e acabou irritando-se com Arthur por tabela. Ele ficou sem entender e meio desnorteado.

Os aventureiros, enfim, chegaram à casa de Áquila.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Aurora Carmesim #1 - Travessia, parte 7


Norte de Namalkah, Reinado

Escuridão.

Completa, densa, opressiva. O ar pesava cada vez mais a medida que eles trilhavam o caminho que comportaria facilmente onze homens perfilados. Cledoveo seguia à frente caminhando sem emitir um som sequer. Parecia saber exatamente onde cada coisa se encontrava, desde falhas e depressões até pedras maiores, passíveis de tropeço.
A tensão era incrível.

- Chegamos, nobres convivas. - disse Cledoveo estacando de repente em frente a uma parede cortada no fundo da trilha - É por aqui.

"Ejas rebaot o rtoaop, euq emu guneas nopserda oa achmaod!", sussurrou Cledoveo com a mão na rocha nua, que adquiriu um brilho pálido e a consistência de um lago agitado num dia de tempestade.

- Acompanham-me. - disse ele já atravessando o portal.

Ressabiado, o grupo se entreolha no momento em que o homem atravessa a superfície. Toda uma discussão muda estava sendo travada desde a chegada no platô. Tudo se desenrolava nas mentes uns dos outros. Impressões, conjecturas, apurações e dúvidas. Tudo compatilhado, tudo dividido. Todos como um.
Optaram por atravessar a parede em conjunto, uma vez que tanto o corredor quanto o portal permitiam tal arranjo. Acertaram o passo, afiaram os sentidos, prepararam-se incoscientemente nos segundos que antevieram a travessia. Nesse momento, apenas uma palavra escapou involuntariamente aos lábios cerrados:

"Frio..."
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Coração das Trevas, Lugar-nenhum

"Bem-vindos ao Coração das Trevas, minha morada através dos milênios."

Caso fosse necessária uma palavra para definir o sentimento geral naquele momento, esta seria "Apoplético".
Um amplo aposento, com o teto completamente liso, espelhado e abobadado, sustentado por arcos que estendiam-se do topo ao chão, em colunas ricamente trabalhadas, que demarcavam as divisões das sessões de inúmeras pratelerias repletas de livros das mais variadas formas, tamanhos e calibres. Algumas sessões estavam atulhadas de pergaminhos perfeitamente dispostos, variando em tamanho, diâmetro e suporte. O chão era polido e negro como a noite, com padrões em um azul cintilante ricamente trabalhados em toda sua superfície, emprestando um cintilar fantasmagórico à iluminação amarelada do local.

Mas o salão em si não era todo o espetáculo. À frente do local de chegada - uma das estantes -, a quase cinqüenta passos de distância, repousava um tabuleiro de xadrez, equilibrado na ponta de uma base platinada em forma de lança. Peças coloridas pontilhavam a superfície, dispostas em uma ordem que denunciava uma partida sendo jogada. E atrás dessa maravilha, um figura titânica fazia tudo parecer pequeno, cinza, sem graça.

Um dragão azul.

Não apenas um dragão azul qualquer, mas talvez o maior dragão azul que já pisara no plano material de Arton. Imponente em sua postura, a ferocidade velada espreitando em cada escama, o terror lutando para ser liberado por todos o poros.
Seus olhos recendiam a algo antigo, secreto, poderoso. Sua cabeça não seguia o padrão de seus parentes mais jovens. O chifre característico não estava presente e aparentemente nunca estivera lá, emprestando-lhe uma aparência que lembrava a seus primos vermelhos.
Sua face era adornada por brincos cintilantes e talhada por cicatrizes ancestrais, em seu longo pescoço repousavam torques e colares de ouro, platina e alguns metais de coloração estranha. Braceletes e pulseiras tomavam seus antebraços poderosos e anéis fustigantes abraçavam algumas de suas garras. Seu corpo era esguio e poderoso, entrecortado por músculos irrequietos capazes de uma explosão em fração de segundos, suas asas enormes repousavam sobre o dorso brilhante, capazes de parar o fluxo de um rio com um farfalhar.

Maior que o mundo, mais velho que o tempo, mais poderoso que a morte.

"Eu sou Xiucoahtl"

quarta-feira, 10 de março de 2010

Aurora Carmesim #1 - Travessia, parte 6


Norte de Namalkah, Reinado

"Cledoveo"

A figura titânica ocupava quase todo o seu campo de visão. O restante era tomado de estantes repletas de livros e um solitário tabuleiro de xadrez. A voz da criatura soava serena, quase uma recepção, mas tão carregada de autoridade que seria capaz de fazer um rei dobrar-se a sua vontade. Ante tão poderosa presença, o que poderia um humano fazer?

- Sim, mestre - respondeu o recém-chegado enquanto ajoelhava-se.

- Excelente trabalho, meu servo. Contundente a ponto de não ser questionado e misterioso o suficente para instigar o encontro. Não esperava menos de você. - bradou a imensa figura a sua frente.

- Obrigado meu lorde. Sempre a seu dispor.

Com um gesto mínimo o grande dragão fez aparecer um amuleto, pouco menor que uma maçã, aos pés de Cledoveo.

- Podes ver o que repousa a seus pés, Cledoveo?

Abrindo os olhos ele pôde ver. Um amuleto bem trabalhado, entrecortado por diversas serpentes dispostas num emaranhado em torno de um castelo. Elas confundiam-se umas com as outras, dando a impressão que um rio caudaloso abrira um espelho d'água para mostrar a paisagem.

- Mais uma tarefa e será seu. Chame seus servos a minha presença.
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Forte Éritro, Deheon

Era um grande aposento.

Quadrado, dez passos de lado, mobiliado com uma cama de docel alto e bem trabalhado, uma mesa com duas braças de diâmetro acompanhada de duas cadeiras acolchoadas em veludo vermelho, um manequim para suporte de armadura, uma escrivaninha grande de madeira escura, com uma cadeira confortável, um baú aberto, adornado em metal, com uma réplica sobre um criado-mudo ao lado da cama, onde jazia também uma tina de prata cheia d'água.
Um tapete circular cru ocupava todo o centro do aposento e uma porta de vidro dava passagem para a pequena varanda externa. Simples e bonito, aconchegante e distraidamente luxuoso.

- Esse será seu aposento por hora, jovem Magnus. - disse Thomas, parado à porta. - Já usou algum desses baús? - perguntou, inclinando a cabeça em direção ao baú adornado.

- Não. O que é? - perguntou Magnus já vários passos quarto adentro.

- Um dos baús secretos de Viktor. Basicamente você coloca suas coisas dentro dele e o fecha, conservando aquela miniatura ali. Ele some no momento em que você fechar a miniatura, só reaparecendo na sua frente quando você reabrí-la.

- Como é que é? E pra onde vão minhas coisas? Tá maluco?

- Elas ficam dentro do baú oras, a salvo, num plano fora do alcance de qualquer um. Quando você reabre o bauzinho, ele retorna com suas coisas e você pode voltar a escondê-lo à vontade. Só não perca a miniatura senão você perde tudo. E acredite, Viktor não fica nada satisfeito com isso...

- Entendo. Não obrigado. Prefiro minhas coisas onde posso ver se não se importa.

- Apenas uma comodidade meu jovem, sem obrigações. Aquele pequeno sino sobre a cama chama um criado assim que você ressoá-lo. Onde for, quando for, pro que precisar, dentro dos limites do forte. Fique à vontade e descanse, teremos com você amanhã após o desjejum.

- Obrigado, até mais então.

Fechando a porta do quarto, um sorriso invade a face de Thomas. "Jovens, assustam-se com tudo...".

Atravessou apressado os corredores em direção à sala de mapas, a urgência queimando seus calcanhares. Diversos cursos de ação invadiam sua mente a cada passo. A curiosidade só fazia crescer, alimentada pelas conjecturas.
Iriam eles investigar? Se sim, quando? Seria um embuste? Uma oferta de aliança?
Estava doido pra descobrir...
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- Iremos pois agora, maldição! - vociferou Darin espalhando cerveja anã no agitar de sua caneca.

- Concordo convosco empolgado amigo porém, seria prudente agir tão cegamente? As coisas estão deveras conturbadas em Arton e um movimento equivocado pode incutir em mais problemas - tentou Viktor em vão acalmar o balançar de caneca de Darin.

- Eu acredito ser melhor investigar Viktor. Lena está ausente dos céus pelas próximas três noites e todos sabemos o poder que essa ausência pode ter - interveio Halfdan.

De fato eles sabiam. Eles e toda Arton. O maior dos goblinóides, o general responsável pela derrocada élfica e pela tomada de Khalifor, a dita encarnação de Ragnar, Thwor Ironfist, nascera numa noite dessas, segundo as histórias. Se algo assim poderia ser feito, o que não poderia?

- Eu voto por irmos. Se algo der errado, tomaremos as providências - concluiu Thomas.

- Você sempre vota pra irmos seu curioso de meia tigela. Quantas vezes isso já nos fodeu?

- Eu também gostaria de investigar. - disse Thaedras - Se algo ou alguém pôde me ludibriar daquela maneira, seu dito "mestre" deve ser ainda mais poderoso. E além do mais, se for um embuste, acabaremos logo com a ameaça antes que ela se consolide.

- Então que seja, iremos pois ao encontro agora mesmo. Preparem-se, partiremos com o sol a pino.
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"Ojesed edno son-evel" sussurrou Viktor, de mãos dadas com seus amigos.

Estavam muito diferentes das figuras despreocupadas de mais cedo.
Darin era um bloco maciço de metal e couro, com um machado enorme pendurado à suas costas. Halfdan estava mais altivo do nunca, numa armadura completa prata e dourada adornada por mantos clericais bordados com diversas balanças. Thaedras vestia uma armadura de aparência frágil, inteiramente composta de folhas de salgueiro trançadas, por sobre um camisão de cota de malha prateado. Duas espadas às costas, arco dobrado numa coxa e aljava pendendo da outra. A fúria élfica encarnada. Thomas vestia uma armadura completa prateada, com a pena e o pergaminho gravado em alto-relevo no peito. A viseira erguida deixava seu rosto excitado aparente. Espada longa à cintura, outra bastarda nas costas e escudo por cima da mesma, brilhando com o brasão de Tannah-Toh. Viktor trajava um manto cinzento sobre um colete grafite adornado de chamas douradas. Calça, botas e luvas completavam sua vestimenta e um aro de ouro adornava sua fronte. Trazia uma mochila muito surrada em suas costas e só.

ZiUf!!
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A paisagem seria agradável, colinas pontuadas por pinheiros altivos, um grande rio muito azul entrecortando pastos muito verdejantes, o espectro amarelado no horizonte, denunciando o deserto além, algumas nuvens alvas brincando pelo céu anil, fosse pelas dezenas de figuras ameaçadoras postadas ao redor da entrada da caverna.

Homens e mulheres, anões, halflings, elfos e algumas outras figuras confusas contornavam todo o platô em que eles chegaram, formando um "bolsão", uma linha contentora, deixando apenas a entrada da caverna como via livre. E lá, de pé, o homem que entregara a pedra a Thaedras.

- Olá senhores, eu me chamo Cledoveo. Acompanhem-me.

E assim foi feito.
Seguiram o estranho Cledoveo através da boca da caverna, em direção as entranhas da escuridão.

terça-feira, 9 de março de 2010

Contos Artonianos #3


A Dama das Trevas

“Era uma vez uma jovem princesa chamada Jasmira. Ela tinha cabelos negros como ébano, olhos tão azuis como o mar. Era bondosa e bastante gentil e era adorada por todos, desde servos e os animais. Entretanto, ao amanhecer de seu décimo quinto ano de vida, ela fora prometida a um burguês de considerável fortuna. Sua família, apesar do sangue nobre, já não possuía a glória dos tempos antigos e estava em franca decadência na elite da sociedade de Valkaria. Eram os tempos de Tibar, o deus do comércio. Os comerciantes prosperavam e ganhavam cada vez mais espaço na política e nos bailes. Roberk Maurice era um homem cruel e depravado, mas muito rico. Com um acordo de cavalheiros, conseguiu a mão da jovem Jasmira em casamento. A infelicidade da jovem foi tamanha que ela nunca mais sorriu de forma tão bela. Jasmira tinha muito medo de ser maltratada e ser infeliz pelo resto de seus dias.
Então, durante um baile onde seria formalizada para a alta sociedade a união das famílias burguesa e nobre, da união de Jasmira e Roberk, onde seria selada a infelicidade eterna de Jasmira, um homem misterioso surgiu. Ele possuía cabelos negros, espetados, um olhar de pura sedução que convidavam à perdição. Sua pele era pálida e seus lábios muito brancos. Possuía um magnetismo que fazia a todos reparassem em sua presença quando passava. Ele observava entediado ao baile quando reparou em Jasmira e em sua beleza estonteante.
Atraído, soube que precisava desesperadamente de um beijo da donzela Jasmira e nada ficaria em seu caminho. Nem mesmo um burguês, nem mesmo um nobre. Abordou a jovem donzela com cordialidade e ela sentiu-se tão vulnerável que não teve outra escolha a não ser ceder aos encantos deste misterioso homem que trajava roupas negras, sobretudo negro e pesadas luvas brancas.
Não demorou muito para que ambos satisfizessem seus desejos proibidos. Jasmira e seu misterioso homem se esconderam em algum local escuro, acobertado pelo manto estrelado de Tenebra sobre Arton. Então, o homem revelou-se um monstro.
Suas presas brotaram instantaneamente após um longo beijo. Mordeu o pescoço de Jasmira ferozmente até tirar-lhe todo o sangue. Jasmira perdeu o brilho dos olhos, perdeu a cor de sua pele. Aos poucos, uma nova consciência tomava conta de sua mente. Aos poucos, presas cresciam e uma fome insaciável tomava conta de seu ser. Ela precisava de sangue. Ela agora era uma vampira, uma criatura da noite. Uma criatura de Tenebra.
Não demorou muito para ela assassinar seu pretendente ao casamento forjado. Não demorou mais do que alguns meses para matar toda sua família e não sentir nenhum remorso. Sua mente não processava sentimentos humanos. Era uma cria da noite e abominava Azgher, o deus-sol. Seu misterioso homem que trouxera essa nova não-vida a ela simplesmente desapareceu como que por encanto. Ela não se importou. Não se importava com nada. Aos poucos sentiu-se agressiva e depressiva o suficiente ao perceber que não sentia mais nada, apenas um desejo insaciável de matar.
Foi quando ela descobriu outros como ela. Criaturas da noite que compartilhavam de seu destino. Lobisomens, necromantes, outros vampiros perdidos, anões devotos da antiga religião de Tenebra, elfos desiludidos com o calor do sol. E clérigos de Tenebra. Estes foram os mais amigos de Jasmira e lhe ensinaram tudo sobre a religião da deusa das trevas e das criaturas noturnas. Ela percebeu, então, que o mundo não deveria ser dos humanos. Percebeu que as crias de Tenebra eram seres superiores e não deviam dividir o mundo com seres tão inferiores e mesquinhos como os humanos e os clérigos de Valkaria pensavam.
Ela viu que Azgher deveria ser apagado para sempre.”
- Incrível história, Ferannia. É totalmente verdadeira?
Arthur Woodcastle III e Ferannia Holimion estavam numa praça, acomodados em bancos de pedra em frente a um pequeno gramado. O céu estava claro e bem azul. O sol queimava seus corpos com o verão de Altossol, o mês de Azgher. Arthur trajava sua armadura formada por um colete e protetores de perna de couro, coberta com plaquetas de metal sobrepostas, semelhantes a escamas de peixe. Em sua cintura, a espada bastarda embainhada de um lado e uma maça leve amarrada do outro lado. Ferannia se divertiu com a idéia de que Arthur era um jovem entusiasmado com a possibilidade de se aventurar a qualquer momento.
No dia anterior eles haviam se conhecido e a elfa havia deixado uma proposta no ar. Arthur quase não conseguiu dormir, em seu modesto alojamento, aguardando com ansiedade juvenil o encontro com Ferannia.
- Claro que é verdade. Estou te contando a introdução dessa missão, jovenzinho.
- Pare de me tratar como uma criança. Então, conte-me, o que isso tudo tem a ver com a missão?
- Estudei essa história na Biblioteca de Tanna-Toh, a Mãe da Palavra, como eu já disse, e fiquei intrigada. Jasmira se tornou uma clériga de Tenebra e fundou uma ordem, uma sociedade secreta. As autoridades de Deheon nunca conseguiram desmantelar esse grupo nem achar a própria Jasmira.
- Entendi. Mas ela já fez algum mal para alguém?
- Não prestou atenção? Ela é uma clériga de Tenebra. É um culto proibido aqui em Deheon. Não precisaria ter feito nada. Mas de fato, ela o fez. Matou uma elfa da Vila Élfica para sacrifício em nome de sua depravada deusa.
Ao falar disso, seu semblante sempre divertido e curioso se tornou mais tenso e fechado. Ela mirou no horizonte e observou alguns esquilos subindo numa árvore próxima. Arthur entendia (ou achava que entendia) o drama da elfa e estava disposto a ajudar de qualquer maneira. Mas, talvez para causar uma impressão de que não era um garoto afobado, resolveu perguntar mais.
- Então devemos achar Jasmira e entrega-la às autoridades? Ou você pensa em matá-la para se vingar?
- Não seja tolo, Arthur. Não tenho o desejo de vingança em meu coração. Ela é uma vilã e tem ambições obscuras em sua mente. Como herói, é seu dever derrotá-la e entrega-la às autoridades.
- Mas por que você se importa se não deseja se vingar a sua amiga elfa?
Ela voltou a olhar Arthur como quem não o reconhecia.
- Você faz muitas perguntas. Tanna-Toh fica feliz com sua sede de saber.
- Não posso sair confiando em qualquer um. Já dizia meu pai.
- Tudo bem. Eu quero algo que seus comparsas roubaram algo de valor dessa minha amiga que foi assassinada. Um objeto muito belo e de grande valor sentimental para mim.
Arthur sorriu, satisfeito com o que ouvira. Pensava que estava indo bem ao lidar com os aventureiros.
- Você vai me ajudar, então. Agora, deve ter alguma pista para termos onde começar, né?
- Muito esperto de sua parte. Sim, há três dias um clérigo de Khalmyr reportou à milícia um encontro com lobisomens do tipo bestial, menos poderosos que os do tipo feral. Estes são vulneráveis a quaisquer armas, não apenas as mágicas. Ele deve ter mais informações sobre o caso.
- E como descobriu isso?
- Você se surpreenderia com o que estas orelhas ouvem todo dia. Após a morte de minha amiga eu decidi resolver esse assunto e recuperar a jóia. Então fui para a Taverna do Pombo Perneta, onde sei que milicianos vão tomar sua cerveja para se refrescar destes dias quentes em seus horários de descanso. Então ouvi um deles comentar sobre esse caso, e sobre o clérigo de Khalmyr.
- Muito bem, você é uma aventureira esperta. E você sabe onde vive este clérigo de Khalmyr?
- Não. É um passo que precisamos resolver antes que eu precise usar sua espada para lutar.
- Bem, acho que isso eu posso descobrir.
Arthur sorriu para Ferannia e colocou a mão em seu ombro, reconfortante. Ela sentiu-se estranha com um pequeno susto.
- Não se preocupe, tenho um amigo que nos ajudará. Mas é melhor eu ir até ele sozinho. O lugar onde ele mora você não seria bem vinda.
- E onde ele mora?
- Na Favela dos Goblins.
***
Favela Goblin.
Azgher despontava no céu bem em seu centro. Os estômagos roncando denunciavam a hora da parada no trabalho para o almoço. Arthur subia o pequeno morro onde estavam os barracos de madeira e pedra dos goblins. Fungou fundo, incomodado pelo cheiro muito hostil. Tão hostil quanto os olhares desconfiados e maliciosos dos goblins que observaram sua entrada.
Sentia os olhos em sua nuca, mas sabia que estava seguro, Nenhum goblin ousava se aproximar de um humano com armas e armaduras. Um aventureiro atacado em plena luz do dia só traria dor de cabeça desnecessária. Arthur chegou ao casebre humilde de seu amigo. Bateu na porta e gritou seu nome. Ele atendeu com olhares e sorrisos genuínos de felicidade.
- Arthur, seu fedelho nojento! Você não vem me visitar faz muitos dias!
- Sim, Korn, faz tempo. Mas eu estava me preparando para ser aventureiro, lembra?
Arthur e Korn se cumprimentaram com sorrisos, mas sem abraços. Eles se conheciam há muito tempo, desde quando Arthur se mudou para Valkaria. Os dois se conheceram em alguma taverna onde o goblin fora acusado de trapacear no jogo e quase morto por isso. Arthur o defendeu e ambos acabaram tendo que brigar com toda a taverna. Apanharam, foram expulsos e presos por uma semana. Na cadeia ambos se tornaram amigos.
- Lembro sim, uma idéia louca, se quer saber. Nada mais confortável que viver sob esta apetitosa estátua.
- Nada mais em graça e fácil, né? Sabe que quero ser um herói como meu pai e...
- Ta bom, ta bom, ta bom. Você escolhe como será sua vida. Mas não escolhe como será sua morte, saiba disso. Conte-me, o que quer?
- Tornei-me aventureiro de fato, Korn. Estou numa missão com uma elfa que é tremendamente linda, meu caro. Ela se chama Ferannia Holimion.
- Seu borra-botas. Já a levou para a cama?
- Não seja tão estúpido! Sou um cavalheiro.
- Bicha.
- Como eu ia dizendo, recentemente ela perdeu uma amiga, vítima de assassinato. Foi sacrificada para Tenebra, a deusa das trevas, sabe?
- Sou um goblin e não um burro.
- Então, acontece que quando mataram essa amiga dela, roubaram um objeto de valor sentimental de Ferannia. E ela o quer de volta. Ela buscou saber o paradeiro desse assassino, que era um lobisomen e acabou descobrindo sobre Jasmira, sociedades secretas e tal.
Korn arregalou os seus olhos vermelhos e chamou atenção de Arthur.
- O que foi? Sabe da história de Jasmira?
- Não é nada, continue. O que quer de mim?
- Ferannia descobriu que um clérigo de Khalmyr enfrentou lobisomens há três dias. E ela acha que existe uma ligação. Afinal, lobisomens não saem por aí em toda esquina. Quero que você descubra quem é esse clérigo e onde ele mora.
Korn colocou a mão sobre suas têmporas já sentido que viria uma enxaqueca daquelas. Lembrou do encontro com Delrin Turgar, o anão que é o clérigo de Khalmyr que seu amigo procurava. Lembrou dos lobisomens que ele enfrentara, lembrou de Mogri, seu amigo que desaparecera na mesma noite em que tudo aquilo aconteceu. Desde então ele havia achado melhor não se envolver com isso, temendo desaparecer também.
- Como você é um aventureiro, vou lidar com isso de forma profissional. Quero um pagamento de cinqüenta tibares de ouro.
- Korn, você receberá esse dinheiro caso consiga a informação antes do anoitecer.
- O clérigo de Khalmyr que procuram é o anão Delrin Turgar. Ele mora no bairro dos anões. Eu indico o caminho. Agora, me dê o ouro.
Embasbacado, Arthur arregalou os olhos.
- Como sabia disso? Não me diga que estava com ele durante a luta contra os lobisomens?
- Estava sim. Eu vi primeiro os lobisomens conversando com um conhecido meu, o Mogri, que Nimb o tenha. E resolvi seguir esses monstros. Quando eu os vi lutando contra o anão resolvi ajudar. Mas para conseguir mais um informante futuro, sabe como é. Salvar a vida de um clérigo da justiça é sempre bom.
- Você tem porte de aventureiro também, Korn. Lutou contra lobisomens, salvou vidas.
Arthur zombou de Korn, mas ficou feliz sobre as informações e das atitudes do amigo.
- Me pague agora.
- Vou te pagar sim. Mas só se houver ouro nessa jornada para ser pilhado. – Sorriu para o amigo e colocou sua mão sobre seu ombro.
- Maldito humano. Aprendeu tudo que eu ensinei mesmo, hein?
Os dois desceram da Favela dos Goblins em direção à praça onde Ferannia estava.
- Ela é uma elfa. A primeira reação dela quando te vir será péssima. Mas não a leve a mal. Sabe como é...
- Eu sei muito bem, Arthur. Eles perderam seu reino para monstros como eu. Tudo bem, não mencionarei a cidade perdida de Lenórienn.
***
Os dois logo alcançaram a praça e viram Ferannia sentada, lendo seu grande livro de capa grossa de couro. O sol iluminava seus cabelos dourados e sua pele branca a deixando levemente corada. Era uma visão muito bela, de fato. Ela levantou os olhos lentamente e viu Arthur e Korn. Ergueu uma sobrancelha e suspirou.
- Este é seu amigo?
- Korn, muito prazer, madame.
Ferannia olhou com desprezo para Korn e Arthur sentiu que ali poderia perder o controle de tudo se não tomasse cuidado nas apresentações.
- Korn é um amigo que conheço há uns três anos. É confiável. Meio rude, meio covarde, mas um bom amigo. Ele me deu as informações que precisávamos. Sei quem é o clérigo de Khalmyr que procuramos e onde ele mora. Korn nos guiará.
- Isso mesmo, Arthur. Então vamos. Primeiro as damas.
Korn começou a se divertir um pouco zombando da expressão de desprezo de Ferannia. Ela pensava que poderia ter errado em sua escolha de guerreiro. Que tipo de homem fazia amizade com um goblin, uma criatura que te apunhalaria na primeira oportunidade? Deteve seus pensamentos ao analisar a conversa dos dois. Já faziam sinais faciais que dialogavam silenciosamente. Demonstravam uma grande intimidade entre os dois. Talvez por ser um goblin do Reinado e não de Lamnor, ele fosse menos selvagem. Mas era difícil ignorar que aquela raça foi uma das responsáveis pela maior tragédia da vida dos elfos: a queda de Lenórienn, o antigo reino dos elfos.
Arthur comentava algo com Korn sobre lugares de Valkaria e perguntava à Ferannia mais sobre Jasmira. Ele juntou os conhecimentos dos dois. A Sociedade da Noite Eterna era responsável pela morte da elfa, amiga de Ferannia, e o roubo de um objeto especial. Eles tinham contato com goblins provavelmente porque possuíam a melhor rede de informações disponível. Quando soube que o clérigo de Khalmyr era um anão, Ferannia sorriu com sarcasmo. Haveria o destino pregado uma peça com ela? Nunca havia pensado na formação de um grupo tão multirracial como esse.
Delrin Turgar abriu a porta de sua casa e viu os três aventureiros. Korn era o único que ele conhecia realmente. O anão ficou desconcertado, incerto ao reparar no grupo uma elfa e um goblin juntos.
Depois da explicação, os quatro estavam sentados sobre a mesa de jantar do anão. Era inicio da noite e eles pensavam em prioridades. Arthur desejava ajudar Ferannia que não mencionou recompensas. Korn queria ter ido embora, apenas apresentando Arthur e Ferannia à Delrin. Mas ele foi convencido por Arthur a ficar e ouvir. Mas ele insistia em pedir recompensa para Ferannia, que solenemente o ignorava. Delrin não era exatamente amigo de Korn, mas por ele possuía estimas e ficou aborrecido por saber que o amigo de Korn desaparecera. Arthur conciliava todos. Perguntava a Korn sobre como era Mogri, indagava à Delrin sobre os assuntos de Tenebra e os objetivos da Sociedade da Noite Eterna. Perdia alguns olhares para Ferannia e demorava alguns segundos reparando sua beleza e depois perguntava sobre o objeto.
- Mogri era um covarde. Certo, todos nós, goblins, temos essa fama, eu sei. Mas ele era considerado covarde até mesmo para nossos padrões. Nunca ousou roubar no jogo com medo de ser pego. Não roubo muito, mas quando sua mão vem ruim, você não tem muita escolha se você quiser ganhar o seu pão de cada dia. Ele sempre foi na dele, calado. Não tinha nem família. Não que eu conhecesse. Um dia eu o vi tatuado, com essa maldita estrela negra e pensei nos problemas que ele poderia causar para a favela. Ele trabalhava como faxineiro em uma loja de jóias, na Rua dos Cristais. E sumiu completamente logo depois que eu e meu amigão Delrin matamos os lobisomens. – disse Korn.
- Como vocês sabem, Tenebra é a deusa das trevas, da noite e das criaturas noturnas. O que vocês podem não saber é que ela também é uma deusa criadora dos anões. Ela e Khalmyr formaram uma união certa vez e dela nasceu os anões. Essa é a história mais bem aceita no clero de Doherimm. Acontece que o culto à Tenebra está cada vez mais caindo em esquecimento na Montanha de Ferro. Entretanto, meu irmão mais velho, Falrin Turgar II, se tornou num sacerdote de Tenebra e está desaparecido faz alguns anos. Por isso tenho algum respeito por seus servos. Acontece que estas bestas, os lobisomens, fazem parte de um culto em especial de Tenebra. A Sociedade da Noite Eterna tem como objetivo apagar Azgher do céu de Arton e nos envolver com a escuridão da noite para sempre. – Disse Delrin.
- O objeto era uma jóia, um cristal de cor azulada, preso num cordão de ouro bem fino. É uma relíquia de minha família e eu herdei há alguns anos. Ela possuía uma leve aura mágica que eu estava pretendendo estudar assim que me formasse maga. Presenteei à Melinnya, minha amiga, para que ela cuidasse enquanto eu viajava para meus estudos arcanos. Quando voltei à Vila Élfica, havia descoberto essa tragédia. – Disse Ferannia, diminuindo seu tom de voz até tornar sua melodiosa voz em melancolia.
Ela sentia-se um pouco desconfortável com a petulância de Korn e com os meios quadrados, rígidos e teimosos de Delrin. Arthur era o único que a fazia sentir-se mais animada para prosseguir e logo descobriu que havia feito certo em escolher o jovem humano para ajudá-la.
Arthur entendia a seriedade da questão que envolvia assuntos sérios e pessoas poderiam ser feridas. Mas não conseguia esconder muito bem o seu entusiasmo pela aventura. Era sua primeira missão e nem precisava ter saído de Valkaria. Tinha seu amigo Korn como alguém ardiloso, silencioso que obtinha informações valiosas. Tinha Delrin Turgar como um anão sábio e que era abençoado por Khalmyr, o deus da justiça. Via com extremo valor a presença de uma elfa que tinha conhecimentos mágicos. E havia ele mesmo, com sua perícia na espada, um forte lutador.
Então ele traçou um plano. Disse que nessa noite eles deveriam agir para avançar sobre a Sociedade da Noite Eterna, impedir que seus planos avançassem. Os lobisomens estavam no bairro dos anões, indo a algum lugar. Lugar que o lobisomen que foi interrogado não revelou sob nenhum interrogatório. Delrin como era um conhecedor do bairro, deveria liderar essa parte. Arthur, Korn e Ferannia seguiriam seus passos pelo pouco iluminado bairro dos anões.
E assim, um grupo de aventureiros, como muitos outros, partiram em ação em Valkaria sob a lua em escudo de Tenebra.