quarta-feira, 2 de março de 2011

O Novo Deus #1 - Encontros



Catedral do Recomeço - Triumphus - Sckharshantallas

O Salão do Despertar estava lotado.
Figuras enfiadas em mantos brancos circulavam pelo salão, parando ocasionalmente em um ou outro leito antes de seguir caminho. O salão estava repleto de macas simples, feito um hospital de campanha, e sobre cada uma delas jazia um corpo. O salão em si não ostentava a aparência do hospital improvisado em que se transformara, com suas colunas largas e teto abobadado, a quase dez homens de altura. O piso de mármore muito branco contrastava com o cinza das paredes de pedra entrecortadas por janelas em arco, que davam passagem à claridade do dia. Sobre os leitos, homens, mulheres e crianças exibiam toda sorte de ferimentos - e por vezes nenhum - decorrentes do último ataque da besta mágica que assolava a cidade. O Móock.



Porém, o flagelo da cidade não era de fato seu algoz, uma vez que toda a área da cidade estava protegida por uma benção ancestral, uma dádiva concedida por um deus maior em pessoa. A Área do Renascer. Essa benção permitia que os que morressem de causas não-naturais dentro das fronteiras da cidade fossem automaticamente trazidos de volta à vida horas depois, conseguindo assim uma segunda chance. Mas como os desígnios dos deuses são obscuros aos olhos mortais, tal benção foi encarada por muitos como uma maldição, devido seu preço. Todos que ressuscitassem dentro dos limites da cidade jamais poderiam deixá-la, perecendo imediatamente e de maneira dolorosa caso o fizessem.
E assim era conhecida a cidade de Triumphus, a cidade da benção/maldição de Thyatis.
Cumprindo seu dever deslocava-se apressado entre as macas Yohan, recém-ordenado clérigo de Thyatis. Após uma vida em Triumphus, ele já estava habituado à rotina pós-ataques e mais aquela tarde não reservava nenhuma novidade ao jovem humano. Com seus cabelos negros e olhos claros, tinha a expressão serena de quem está acostumado ao sofrimento, à perda e a desgraça, mas que no fundo acredita que tudo sempre ficará bem. Passara anos como samaritano e já havia ele mesmo ajudado a reerguer casas, comércios e mesmo famílias após a passagem do Móock. Deixando a maca onde jazia um queimado foi surpreendido por uma visão peculiar, dado pouco tempo do ataque. Um elfo de cabelos verdes e expressão confusa acabara de sentar-se no leito, sem exibir marca qualquer de ferimento ou ataque. Aproximando-se notou que o elfo estava com roupas simples, de viajante, e não com os tradicionais camisolões que os samaritanos costumavam vestir os mortos. Já próximo, notara que o elfo trazia consigo apenas um alaúde gasto e um odre, ambos acomodados ao lado da maca, e o olhar longínquo de quem não faz idéia de onde estava ou do que acontecia.
- Olá meu filho. Como está se sentindo? - perguntou Yohan com a mais serena das vozes.
- A-acho que bem. Onde estou? - gaguejou o elfo.
- No Salão do Despertar, na Catedral do Recomeço. Você se lembra do que houve?
- Não... não me lembro de nada...
- Entendo. Judith! - gritou Yohan para uma bela jovem que passava no corredor próximo - Pode se aproximar?
- Pois não Yohan. O que deseja? - disse a bela jovem de olhar triste. Sua expressão estava marcada pela tristeza e pela resignação, e um vazio se fazia presente no fundo dos seus olhos, caso olhasse na direção certa.
- Sabe onde ele foi achado? Sabe o que aconteceu?
- Não Yohan. Ele foi achado nos arredores da cidade, inconsciente. Não parecia ferido ou recém-vivo, apenas desmaiado. Sem posses, sem tibares, sem nada. Apenas esse velho alaúde e o odre d'água.
- Entendo, qual seu nome meu filho?
- Eu não sei. Eu não me lembro. - disse o elfo, com a angústia assaltando sua voz. Sua expressão combalida se tornara ainda mais triste, após a última sílaba deixar seus lábios.
- Pode ser amnésia... - disse o pensativo Yohan, relembrando seus velhos manuais de cura, que há muito estudara avidamente - Vou consultar Magoor. Espere aqui meu jovem.
Yohan e Judith deixaram o elfo em seu leito, com recomendações de descanso e calma. Sem notar, ao se virarem, o elfo apanhara seu velho alaúde e começava a afiná-lo, muito mais por instinto do que por vontade.
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Estrada leste - Arredores da cidade de Triumphus - Sckharshantallas

Uma pequena comitiva seguia preguiçosa pela estrada, balançando ao ritmo dos carros de boi. 
O sol ia baixando no horizonte e a cidade de Triumphus já se fazia visível na paisagem, semi-encoberta por uma ligeira nuvem turva, mistura de fuligem e umidade do cair da tarde. Três carroças seguiam juntas em fila pela estrada bem conservada e calçada, feito um corte no mar de capim que tomava aquela parte da região. Os arredores de Triumphus possuíam uma paisagem bem diferente do normal naquele reino inóspito, onde o cinza e o pó dominavam a vista. Seria efeito da maldição?
Acomodado na traseira da última carruagem, uma figura pequena e hiperativa balançava as pernas aflita. O tédio já chegara e ameaçava dominá-lo, mesmo com a luta ferrenha e insistente travada na sua mente. Já não havia mais o que saber da vida dos camponeses, a paisagem mudara e pouco se alterava e nem mesmo o tempo, ensolarado, dava sinais de mudança. Nada acontecia a muito tempo, e isso não era bom.
Tulin era um halfling, uma figura diminuta, praticamente do tamanho de uma criança humana, e trajava roupas de viagem, um corselete de couro batido, mochila de couro, uma espada do tamanho de uma adaga e um instrumento estranho e desajeitado na mão direita. E estava oleando suas engrenagens pela décima-sétima vez. Seu cabelos castanhos fartos balançavam ao vento, indomáveis no meio da expressão séria e concentrada que ele exibia ao encaixar cada pecinha do estranho instrumento. Um clique denunciou o fim do trabalho. Resolveu colocar seu brinquedo de lado e atacar o pão duro de viagem. Comer sempre afastava os pensamentos tediosos.
Notando uma movimentação sutil na periferia da visão, ficou a observar as ávores espaçadas enquanto a comitiva atravessa um bosque. "Quando tinha chegado ao bosque?" Sequer notara, absorto na tarefa. Arrancou um naco de pão e pôs na boca, observando a paisagem e os movimentos da silhueta que os seguia.
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Bosque nos arredores de Triumphus - Sckharshatallas

A tarde seguia morna e sem graça, morrendo no horizonte.
Luke caminhava a esmo pelo bosque, absorto em pensamentos. Sua perda o afetara mais do que imaginava. Seu avô, o homem que o acolheu, criou e ensinou cada segredo das artes marciais estava morto. Já não sabia mais o que fazer e, pensando em se por a prova contra os mais fortes, deixara a segurança do bosque, da casa tão familiar, do terreno que o criara, resolveu ir até a cidade. Triumphus.
Sabia que lá era lar de aventureiros audazes, guerreiros poderosos e lutadores fantásticos, além da cidade em si constituir um mundo novo a explorar. Não sabia o que encontrar, afinal há pouco tempo apenas descobrira, em meio aos livros de seu avô, o que era uma cidade. Em pouco tempo encontrou um caminho largo, maior que as trilhas dos javalis pela floresta, e decidiu andar à sua margem, imaginando que chegaria em algum lugar. Sua audição apurada captou ruídos estranhos ao longe, estrada acima, e, num movimento sutil, Luke decidiu ir um pouco mais para dentro do bosque e se esconder, observando o quer que fosse que vinha pelo paço.
Divisou em pouco tempo três carroças puxadas por vacas, tendo sobre si seis tripulantes, feno, alguns caixotes e embrulhos. Somente com a passagem da comitiva pôde divisar uma figura pequena na última carroça, fuçando uma traquitana esquisita, feito um brinquedo estranho. Parecia uma criança, mas trajava roupas estranhas e levava consigo mochila e adaga. Tomado pela curiosidade pôs-se a caminhar pelo bosque, acompanhando a comitiva, e observar tão estranho passageiro. De repente, a criança olhou para frente e fez uma cara de satisfação, retirando o brinquedo do punho e apanhando um naco grande  pão na mochila. Em pouco tempo arrancava pedaços e devorava faminto, quando Luke notou que seus olhares se cruzaram num infinitésimo de segundo, e soube que não estava mais furtivo.
Após mais dois passos decidira voltar ao paço, ao mesmo tempo em que o jovem começara a arrancar migalhas de pão e jogar na trilha atrás da carruagem.
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Taverna Pena Vermelha - Triumphus - Sckharshantallas

Havia sido uma má decisão.
Semanas viajando sozinho, vagando no ermo do reino do dragão, não o haviam preparado para isso. A cidade fervilhava com vida, pessoas atarefadas iam de um lado para o outro, correndo contra o tempo para realizar suas tarefas. O andarilho pôde ver, ao atravessar o portão norte mais cedo, que uma parte da cidade estava em ruínas recentes. Ruínas essas pontilhadas de pessoas feito formigas, desfazendo a bagunça e já pondo novamente de pé as construções destruídas. Pôde até mesmo estipular a idade das ruínas, não mais que dois dias. O que será que acontecia com essa gente? Não velavam seus mortos?
Contara três quadras completamente destruídas e, num cálculo rápido, provavelmente uns duzentos mortos. Isso supondo que o ataque tenha acontecido na hora da labuta. Estranho demais.
Agora, sentado numa mesa contígua ao balcão ouvia o burburinho das pessoas. As histórias e anedotas que tornam uma taverna praticamente um ser vivo o haviam convencido finalmente. Fora uma má idéia.
A cidade, ouvira, era vítima de uma benção/maldição que ressuscitava os mortos e os prendia à cidade para sempre. Triumphus. A cidade que tinha uma rixa eterna com uma fênix de fogo gigante de duas cabeças que cuspia bolas de fogo. Excelente criatura para se puxar uma briga. 
Agora, já no fim da tarde, Myzzar ponderava seu próximo destino bebericando uma caneca de cerveja vagabunda. Com os parcos tibares que possuía seria impossível conseguir acomodação decente, então passar o tempo ali, em público, era sua melhor alternativa. Os portões da cidade já deviam ter se fechado e agora ele seria obrigado a passar a noite nessa pocilga, bebendo até o amanhecer antes de sair de uma vez daqui. "Oeste." pensou. "Talvez assim eles não me encontrem."
Ledo engano.
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Taverna Pena Vermelha - Triumphus - Sckharshantallas

Gaast saboreava um tenro pedaço de carne de javali que cheirava a especiarias. A caneca de cerveja ao lado completava o quadro do típico mascate das estradas. Sua tez morena denunciava seu berço nas terras do norte mas suas roupas, típicas de viajante, diziam que estava ali em viagem. Talvez de passagem.
Havia gasto quase dois tibares de prata inteiros com a refeição, mas era uma questão de necessidade. Chegara à Triumphus havia quase dois dias, no fim da tarde. Como desconhecia a cidade, resolveu procurar uma estalagem de melhor aspecto, antes de se decidir por comer ou beber. Não sabia quanto tempo sua estadia ia durar então, que fosse num lugar decente.
Encontrou a Fogo do Móock meio por acaso, ao ouvir a conversa de dois viajantes do oeste. Eles conversavam animadamente entre si, denunciando a longa convivência, e davam graças por encontrar camas vazias na Fogo. Isso vindo de viajantes de fora do reino é praticamente uma recomendação. E estavam corretos.
A estalagem era completamente familiar, tocada por um casal de meia-idade e seus quatro filhos homens. Isso garantia o bom comportamento dos hóspedes e a manutenção das tarefas pesadas e da paz no ambiente. Não que isso fosse necessário. Naquela mesma noite Gaast ouvira que o dono da estalagem, Klauss e sua esposa Anya, tinham sido aventureiros por anos através do reinado, acumulando ouro e poder. Mas após uma caçada mal-fadada acabaram tendo que passar a noite em Triumphus, na ocasião do ataque do Móock, e foram mortos. Quando ressuscitaram receberam a notícia de que Anya estava grávida, o que impediria qualquer tentativa de fuga da cidade. Não que houvesse uma.
Então, na tarde de ontem, o Móock atacou e Gaast conheceu a origem de toda infâmia da cidade. O pássaro de fogo era realmente impressionante, tanto em sua beleza e tamanho quanto em fúria. A tropa de grifos da cidade conseguiu rechaçar a fera, mas não antes dela levar consigo quatro quadras da parte norte da cidade nova e outras centenas de vidas. Mais pessoas ficariam presas, mais vidas recomeçariam e mais destinos seriam reescritos. E era disso que precisava. 
Reconstrução. Recomeço. Renovação.

4 comentários:

Aldenor disse...

Muito bem!
Fiquei com vontade de jogar O Novo Deus. Aff!

R-E-N-A-T-O disse...

Ficou bom! As devidas apresentações dos personagens ficou muito boa. Seis aventureiros em Triumphus. Gostei.

S i n n e r disse...

Olla senhores.
Que bom que gostaram, porque deu trabalho. E nem consegui chegar no fim da sessão, por conta do tamanho e da obrigatoriedade de descrever o que cada fazia antes de se encontrarem.
Afinal, é Triunphus ou Triumphus?
Espero que meu ponto de ação esteja devidamente creditado. E já guarda espaço pro próximo, porque logo vem a parte II.
E um último comentário ainda sobre TRPG e o post "Desmaio demorado". Eu estou sim tendo boa vontade com o sistema. Jogo um jogo e mestro outro. Já ter simpatia e acima disso, gostar, é outra parada. Como achei o 4ª Edição um passo atrás não acho o TRPG uma evolução, com suas simplificações e abusos.
Estou tentando de verdade. Tem sessões que são mais fáceis e outras mais difíceis.
C'est la vie.
Abraços e adièau.

R-E-N-A-T-O disse...

Que bom, fiquei preocupado que não estivesse gostando.