sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Lições...



Mais um corpo foi trazido ao templo de Thyatis da cidade de Triunphus. Lá eles repousavam até que voltassem à vida como era a regra da bênção/maldição de Thyatis. Todos os mortos dentro dos limites da cidade retornavam a vida independente de vontade ou não de qualquer pessoa. Em tempos remotos a cidade recebeu essa dádiva do deus da ressurreição que como forma de pagamento pela bênção exigia que aqueles que voltaram a vida não pudessem mais deixar a cidade. Seriam para sempre prisioneiros em seus limites sob pena de morrerem definitivamente. Porém esse não era um corpo qualquer, era um homem conhecido para os sacerdotes daquele templo sagrado.


Judith atravessou o enorme salão silenciosamente pisando com cuidado sobre o mármore que decorava o chão do belíssimo templo. Aquela hora do final do dia, o pôr-do-sol fazia com que os últimos raios de sol atravessassem os vitrais e projetassem uma miríade de cores sobre os corpos em repouso fúnebre. Clérigos e Samaritanos de Thyatis andavam para lá e para cá cuidando dos ferimentos dos mortos e dando assistência aos enfermos e aos recém retornados da morte com uma dedicação ímpar. Ela chegou até o corpo do defunto depois de passar por guardas da milícia que faziam guarda para assegurar que o homem não fugiria depois de retornar a vida. Era obviamente um criminoso. Para o espanto dela já era a quinta vez que esse criminoso era morto e vinha ao templo para esperar o retorno.
Seus olhos amendoados entristeceram ao ver o rosto do criminoso que era conhecido como “Chacina” em alusão ao plano divino do deus dos monstros Megalokk. Ele era um conhecido assassino de famílias nobres que na maioria das vezes era responsável pela extinção de toda uma linhagem de figurões da cidade de uma só vez. Nem mulheres e crianças eram poupadas por esse homem de coração gelado. Judith suspirou e dirigiu-se ao miliciano e perguntou:
- Quantos foram dessa vez?
- Sete da família dos Ladronath até o próprio Lorde Theodore Ladronath pará-lo. – respondeu-lhe o miliciano
- Aquele senhor parou Chacina sozinho? – bestificou-se
- Sim, surpreendentemente.
- Quando esse homem vai parar meu deus? Por que tantas chances eu lhe pergunto, ajude-me a compreender seus desígnios!

***

A noite era alta quando Judith terminou seus últimos afazeres e foi se deitar em seus aposentos no templo. O quarto não possuía luxos como o resto do templo, porém tinha tudo o que precisava para seu conforto. Adormeceu quase que imediatamente assim que se deitou de tão cansada que estava e logo estava andando por uma colina onde o clima seco dava-lhe sede e podia ouvir explosões ao longe. Lava caía como chuva e queimava a pouca vegetação que podia enxergar ao longe. Judith então encontrou um pássaro e ele era velho e feio, suas penas estavam falhadas em várias partes e mal conseguia ficar de pé sobre suas patas frágeis. Parecia prestes a morrer. Judith parou e ajudou o pássaro a se levantar. Olhou nos olhos do pássaro e perguntou. Por quê?
- Lhe devolvo a pergunta. Por quê? – respondeu-lhe o pássaro.
- Porque devemos dar segundas chances? – Respondeu sem certeza.
- E o que são as segundas chances? – O pássaro debilmente proferiu.
- Maneiras de perdoar? De dizer que o futuro pode ser melhor? – Ainda sem certeza, disse-lhe Judith.
- Exato. Afinal, o que é “ser bom”? Em Arton muitos alegam ser “bons” apenas porque não praticam maldades. Exibem uma lista de crimes e pecados que nunca cometeram como evidência de que são pessoas bondosas. Mas ser bom não é tão simples. Ser bom não envolve apenas evitar o mal. Envolve promover o bem, envolve toda uma série de atos e posturas. – Explicou-lhe o pássaro.
- Por exemplo? – Judith lembrava-se de “Chacina” e achava difícil querer-lhe bem.
- Altruísmo e caridade. Ajudar as pessoas sem esperar retorno. Ajudar os necessitados com bens que possam oferecer-lhes algum conforto material, especialmente aqueles privados de respeito e orgulho. Também o sacrifício. Mais que ajudarem outros, bondade também envolve sacrificar-se pelos outros. Quando você doa um agasalho extra para um órfão, isso é caridade e altruísmo. Quando você doa a própria roupa do corpo e fica com frio para esse órfão, isso é sacrifício. Você privou-se de algo pelo bem de outra pessoa. Sacrificar-se é abrir mão de benefícios, ou até sofrer prejuízos, para ajudar outros. Todos os heróis aventureiros arriscam a vida para matar monstros – mas os bondosos fazem isso para proteger os fracos, enquanto os demais buscam fama, poder ou riqueza. Ser bondoso exige renúncia. Pessoas boas renunciam a prêmios ou recursos que outros aceitariam.
- Compreendo, mas ainda é difícil ver o mal triunfar sempre. – Assumiu-lhe.
- Precisa treinar a clemência minha filha. Bondade requer clemência. Pessoas boas sempre aceitam a rendição de um inimigo – não importa quantas vezes ele fuja de seu cativeiro e volte a praticar o mal. Heróis bondosos tratam seus prisioneiros com compaixão e até gentileza. Bondade exige respeito total pela vida, mesmo que a vida de um inimigo. Seu perdão também é necessário com Jeremy, que você chama de “Chacina”. Perdoar é acreditar que mesmo o vilão mais maligno pode encontrar a redenção, pode arrepender-se de seus crimes e seguir o caminho do bem. Claro que não se trata de perdoar e esquecer o tempo todo – mesmo um héroi bom será cauteloso com relação a alguém que o tenha atacado antes. Assim como a clemência, perdão é oferecido àqueles que pedem. Sem perdão, não há redenção; se todos aqueles prejudicados pelo vilão respondem apenas com ódio e ressentimento, o vilão não tem escolha além de continuar sendo um inimigo.
Nesse momento o pássaro abriu as asas, e por um momento tudo ardeu ainda mais quente, mais brilhante, intenso e cheio de vida. E a Fênix morreu.
Nasceu de novo, nova e forte, e o fogo, que era seu súdito, sua criação, seu amante, rejubilou-se na vida renovada. A Fênix ergueu a cabeça, olhando com orgulho seu domínio, onde o fogo ardia livre, e inflou o peito, poderosa porque nunca morria, e trazia de volta aqueles que a serviam, e porque via o futuro, e para ela tudo era glória.
A Fênix era Thyatis, o Deus da Ressurreição e da Profecia. Não havia nada mais glorioso do que ele: o conquistador da morte, o guerreiro que renascia, o brilhante e intocável, o que sempre retornava.
- Talvez a façanha mais difícil para um mortal seja trazer uma criatura maligna para o lado do bem. Fazer com que um vilão veja os erros de suas atitudes, fazer com que fique sinceramente arrependido. Você não apenas estará evitando que o vilão faça novas vítimas, mas também salvando seu próprio inimigo da danação, e até conseguindo um aliado em potencial. Isso não é tarefa fácil, mas mostrar clemência e perdão pode ser um bom começo; um vilão repetidamente poupado poderá, aos poucos, questionar a razão dessas atitudes. Poderá sentir-se estranho, alguém que não reage com ódio e vingança. Muitas pessoas tornam-se vilões porque foram tratadas com crueldade no passado; portanto, receber um tratamento bondoso e respeitoso pode ser o segredo para curar sua alma.
Os olhos de Judith ficaram marejados ao ver a beleza da Fênix e seu orgulho. E absorveu seus conselhos.
- Lembre-se, ser bom não significa ser estúpido – você não acreditará em tudo que dizem, não pulará de cabeça em um covil de dragão, e nem atenderá imediatamente ao apelo de um notório vilão. Mas também não recusará nenhuma dessas coisas. O herói bondoso investiga pedidos de ajuda, antes de atendê-los. Ele tenta descobrir sobre o dragão e seu poder, antes de atacá-lo. E aquele vilão que pede ajuda, talvez esteja com problemas reais e conheça a redenção quando receber socorro.
A Fênix bateu as asas e voou sobre seu domínio de fogo. Transportou Judith de volta ao aconchego de sua cama com um novo sentimento em seu coração.

7 comentários:

R-E-N-A-T-O disse...

Agradecimentos a revista DS#20 e ao livro "O inimigo do mundo".

Aldenor disse...

Esse post deveria ser canônico para o Forgotten Group Assassino de NPCs. Serve para todos os jogos.

Aguardo mais posts sobre as sessões ou pelo menos introdutório ao que vai acontecer nas sessões seguintes!

Vamos tornar fevereiro num mês cheio de posts bons!

R-E-N-A-T-O disse...

Ué, essa diz o que vai acontecer. Dá dicas sobre a próxima sessão. Basta fazer uma leitura atenta.
Mas verei de fazer mais um post plot pro que virá desde que não seja meta jogado o que se sabe de antemão.

Marins disse...

Realmente muito bom! Serve para todos os jogos...

Parabéns Renato.

Senti a direta... e aprendi a lição espero q os todos tb.

E concordo com Aldi, não é necessário matar os vilões...

R-E-N-A-T-O disse...

Obrigado pelos elogios. A idéia é servir sim para a base de todos os personagens bondosos de todos os jogos de fantasia medieval onde a bondade e a maldade são preto e branco.
Não foi uma direta, é um post para todos. Vários além de você comentaram coisas que precisavam ser consertadas.
Quanto a matar vilões, realmente não é a atitude boa em 90% dos casos.
Espero que os outros leitores, os que lêem e não comentam e não sei se leram também absorvam as lições de Thyatis.

Lucas disse...

Ótimo post, muito bem escrito e instrutivo.
Espero poder ver mais o exercício desse tipo de bondade, pois a partir dele ótimas discussões in game podem ser geradas.

Capuccino disse...

Que bom que renato voltou a fase criativa!
Excelente post, deveria estar contido no book of exalted deeds XD