Inércia

Colônia de mineradores, Yuvalin

Zakharov - Reinado

A tarde seguia preguiçosa, agourenta, fria.

A luminescência rubra permeava o horizonte, mesmo que Azgher se esforçasse para apagar as marcas da tempestade da visão de todos.

No arremedo de cidade via-se pouco movimento a essa hora do dia e quase todos os habitantes estavam trabalhando nas minas do Oeste. Havia muito trabalho e poucas mãos por esses dias e pelo jeito a coisa não iria melhorar no futuro. Desde a queda da tempestade, uma colônia atrás da outra foi sendo abandonada e desativada, formando uma linha de cidades-fantasma que ia desde os limites da área de tormenta até aqui, próximo à capital. Era bem verdade que ainda estavam a um par de dias da cidade, a cavalo, mas ainda assim era próximo. Próximo demais.

A taverna local, chamada ironicamente de "O Saloon", estaria deserta, fossem seis homens distribuídos pelas dependências, contando o taverneiro. Quatro engajavam-se num animado jogo de Yrth enquanto um quinto estava sentando no canto do bar, alheio à discussão e ao ranço morno que permeava o ar. O som da portinhola dupla silenciou o ambiente por alguns segundos, mas, ao notarem se tratar de um menino, a quietude não perdurou mais tempo. Varrendo o salão com olhos o jovem começou a caminhar vacilante em direção ao bar, em direção ao homem lá sentado.

Olhos fixos no copo quase vazio à sua frente, ele mostrava-se alheio à chegada do menino, embora pudesse quase ouvir o ritmo do coração martelante do garoto. Não era um homem assustador, era verdade, mas a atmosfera soturna que o envolvia somada à luminosidade deficiente do salão deixava-no aterrorizante pra um garoto.

Estacando ao seu lado, demorou quase uma eternidade para que ele falasse entre dentes.

- Senhor Joshua? Joshua Black? Mensagem para o senhor - e estendeu um pergaminho tremulante bem dobrado e selado com cera. Duas serpentes entrecruzadas num escudo. Era dele.

Estendeu a mão e retirou o fardo do garoto, que quase saiu sem levar o tibar de cobre preso entre os dedos de Joshua. Num gesto súbito, quebrou o lacre e desdobrou a mensagem, reconhecendo a caligrafia de um antigo amigo.

"Adam,

Espero te alcançar ainda vivo.

Finalmente aconteceu. Em Valkaria, ele matou o último de nós. Agora restamos apenas eu e você, mas isso foi a mais de um ano atrás. Não sabia seu paradeiro até então, mas soube que se casou com uma igual, depois de resgatá-la em Bielefield, após a morte do necromante.

A algumas semanas descobri que estava ainda em Valkaria, vivendo anonimamente com sua mulher e filho recém-nascido, como se fosse merecedor da paz de Marah.

Ainda pode pegá-lo antes que ele o pegue. Estou deveras distante, mas quando soube que ele juntar-se-ia a uma tal Confraria da Aventura e voltaria a viajar, dei um jeito para que essa mensagem chegasse até você em tempo.

Se caçá-lo, desejo-te sorte.

Se desistir, desejo-te paz.

Se morrer, desejo-te honra.

Se conseguir, desejo-te justiça.

Que Nimb esteja contigo a cada passo,

O foragido de Sszzass."

- Finalmente... - Joshua, ou Adam, deixou escapar sem dar-se conta.

Deixou um tibar de cobre sobre o balcão e deixou a taverna, os amigos, o trabalho, a velha vida pra trás.

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Oleou a última peça e encaixou com clique macio na base. Olhou para a cama de palha e contemplou as velhas ferramentas. Havia passado tempo demais nesse torpor cego. Elas cantariam sua canção mais uma vez, a última vez.

Vestiu o velho sobretudo, calçou as luvas, pôs a máscara do homem morto e o velho chapéu. Acomodou suas filhas no coldre e colocou seus irmãos nas costas. Cruzou a bolsa de viagem e checou seus pertences mais uma vez. Seria uma longa caminhada até Yuvalin e de lá até Valkaria.

Enfiou a mão no bolso e contemplou o intricado brasão dourado que viera junto com a mensagem. Segundo seu amigo, garantiria um teleporte até Valkaria e a entrada num prédio no bairro nobre. Lá um tal Jarrod Muloch Alchbuld III, o informante, o colocaria no rastro certo.

Olhou pela última vez para o casebre em que vivera por tanto tempo que nem se lembrava mais quanto. Joshua Black ficaria ali pra sempre e ninguém sequer sentiria falta. Acendeu o colchão com o óleo da lamparina e assistiu de longe o fogo consumir mais essa parte da sua vida.

Adam Brimstone estava de volta dos mortos, caminhando outra vez por Arton.

Ninguém estava a salvo.

Nunca mais.