Dualidade

Cidade velha de Triumphus

Sckharshantallas, Reinado

- Cale-se mulher! Como ousa escondê-lo de mim? Depois de todos esses anos? - e o som de uma bofetada estalada atravessou o ambiente dourado.

Os aposentos recendiam a luxo e riqueza. Almofadas de seda Sambur, móveis meticulosamente esculpidos de madeira Tollon, estofamento de penas de ganso, pórticos, portais e janelas ricamente adornados pelo assombroso trabalho dos povos do deserto. Cortinas bordadas com fios de ouro emprestavam uma luminosidade celeste aos tapetes e seus intricados padrões rubros de lã Namalkah.

No chão uma linda mulher no esplendor dos seus trinta e poucos verões chorava copiosamente, incapaz de manter a dignidade real que sua imagem inspirava.

- Por Wynna amo! Não faça isso comigo! Foi para o seu próprio bem! Para o bem de sua casa! - as tatuagens de seus alvos braços suplicantes eram ainda mais ressaltadas pelos largos braceletes de ouro maciço. Seus negros cabelos eram mantidos domados graças a fios de pérolas que entrecruzavam-se em locais distintos.

Toda riqueza presente naquela sala, naquela cena, naquelas duas pessoas, ultrapassava o que muitos reinos soberanos seriam capazes de produzir em um ano inteiro.

- Vá mulher! Deixe-me a sós e volte para sua clausura! - esbravejava o homem, salpicando a luz ambiente com gotículas de sua raiva líquida.

- Mas amo, a anos não me recolho àquele lugar. Não faça isso. Por favor, eu imploro...

- Esse é meu desejo. Volte e fique a sós com sua consciência, até que eu decida o que fazer com você. AGORA!

A raiva invadiu de uma vez a alma do homem. Com a visão turva de raiva mal percebeu quando foi deixado pela linda mulher. "Como ela fora capaz de esconder tamanha mentira por tantos anos? Como? Como ele não havia visto, enxergado através de seu comportamento? Logo ele, poderoso juiz de caráter, enganado infantilmente."

_____________________________________________

Foi arrancado de seus pensamentos pela visão porta do cofre. Como fora parar lá? Não sabia. Seus pés ganharam vida própria e conduziram seu corpo colérico ao lugar onde ele mais gostava de estar. Onde mais sentia orgulho, paz, força.

Entrou e continuou andando por entre as maravilhas sem se concentrar em quaisquer fio de pensamento. Era puro instinto, puro coração.

Estacou ante esplendorosa escultura. Vidro e ouro. Curvas e retas. Ângulos e linhas misturavam-se formando um pedestal. A luz sobrenatural de algumas peças iluminava o interior leitoso da esfera de cristal e as faces de seu leito áureo. Faces propriamente ditas, marcadas em alto relevo pela mão de algum artesão esquecido, numa terra morta, por um motivo torpe. Mas hoje ela era sua e ele tinha um propósito. Não nobre, mas urgente.

- Mostre-me Fahd Jabr, a Pantera do Deserto - e o interior leitoso da esfera de cristal rodopiou caudaloso, antes de abrir-se em um redemoinho e mostrar a face ébana de um homem duro.

- Salam-alenko Fahd. Desculpe-me a maneira mas preciso pedir-lhe um favor - disparou o homem.

- Alenko-salam muqadas. Estou a seu dispor, sob Azgher ou Tenebra, até o fim dos meus dias.

- Desejo que encontre uma pessoa para mim. Não sei onde foi, mas sei que deixou as terras de Triumphus a três luas. Chama-se Mehmood Izz-ud-Din e é meu filho.

- Deseja vê-lo muqadas? Ou ele tirou algo que lhe pertence?

- Eu desejo vê-lo porque ele tirou algo que me pertence, Fahd. Algo muito valioso. Traga-o a mim.

- À sua vontade malik. Salam-alenko.

- Alenko-salam.

Coçando sua farta barba muito negra, o homem inicia seu caminho para fora. Tantas maravilhas, tantas relíquias, tanto perdido ali, no meio de suas posses. Diziam que ele era um homem rico, mas sequer tinham idéia da vastidão das suas posses.

Reis, heróis, tiranos e vilões, um pouco da história de todos jazia ali, inerte em seu cofre.

Era um mercador e tinha os olhos de Azgher sobre si.

Era um arcano e tinha as mãos de Wynna em seus ombros.

Era Salini Allan e nada estava fora de seu alcance.