segunda-feira, 13 de julho de 2009

Extinção #2 - Anjo profano


V Dlourá - Josefov - Old Downtown
Michael ofegava.
O peso da criança no seu colo, a adrenalina da fuga desenfreada, o frio cortante, tudo arremessava seu pensamento cada vez mais longe de si. Quanto mais progredia subindo a rua mais sua cabeça teimava em permanecer lá atrás, naquele cruzamento escuro. Via claramente a figura débil do homem que lhe salavara a vida estirado no chão, ouvia os passos das coisas rondando a caminhonete, sentia o cheiro do seu hálito podre, das roupas ocres, fedendo a sangue. A pequena criança permanecia imóvel feito um fardo no seu colo. Fria, seca, catatônica. Por causa dela capotaram daquela maneira. Por causa dela ele fugira, deixando à morte o homem que o ajudara sem mesmo saber seu nome. Por causa dela sentia um arrepio na nuca, uma sensação de urgência, um aperto na alma que denunciava que nenhum dos dois iria vislumbrar o amanhecer do dia de Natal.
Olhou o relógio mais por hábito do que por se importar com o tempo que passara correndo. Três e trinta da manhã. A rua revelava indícios de ser um centro comercial, daqueles com prédios de escritórios importantes e consultórios médicos caros. Precisava de abrigo. Precisava se aquecer, pensar.
Procurava uma brecha em todas aquelas fachadas de vidro, todas aquelas portarias cercadas por grades fortes, de metal. Continuou subindo a rua, agora em passos mais lentos. Dobrou uma esquina e mais outra, andando a esmo. Procurando. Pedindo aos céus por uma chance de viver um pouco mais. E a recebeu.
Uma portaria de vidro, no térreo de um prédio bonito, brilhando verde. Olhou para os lados - vendo no fim da rua um clarão de incêndio que bloqueava a avenida - procurando vestígios das coisas. Nada. Caminhou em direção às portas de vidro, deixou a pequena criança de pé ali com o olhar vidrado no infinito, e chutou a porta de vidro com toda sua força. Nada aconteceu. Outra vez e outra vez e ainda assim, nada.
Aflito, vasculhou a rua em busca de algo pra estilhaçar a porta. Nada, a não ser os parquímetros eletrônicos perfilados na lateral da via. Se fossem iguais aos de Paris ele teria uma chance. Agarrou um e destravou a base, liberando a grande caixa amarela do seu suporte. Usou-a como um tijolo, arremessando uma, duas, três vezes na porta até produzir algum resultado. A porta trincou-se por completo, porém, continuava de pé. Rasgou com as próprias mãos uma brecha e atravessou com a criança.
Dentro do hall, a luz de emergência inundava o ambiente com uma luz estéril, opaca, cinza. Um grande balcão, quatro elevadores, um relógio redondo na parede. Três e cinqüenta e cinco. Precisava descansar. Precisava se esconder. Precisava viver.
Perscrutou o salão e viu a saída de emergência. A escadaria o levaria para cima pelas entranhas do prédio e poderia, com algum esforço, ser trancada por dentro. Segurança, enfim. Michael levou a garotinha pela mão até o interior do corredor das escadas e entrou junto, escorando a saída com um dos batentes que delimitavam os acessos aos elevadores. Sentiu-se desabar parede abaixo, no escuro. Sua cabeça doía e ardia, provavelmente num corte do acidente. Sua mão latejava e seu peito estava em brasas. Aninhou a pequena em seus braços e entregou-se finalmente ao abraço de Morfeu.
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O mundo era branco mas as pegadas seguiam rubras. Estava correndo na neve, seguindo os rastros em direção a um pequeno bosque cinza. O céu era perolado, pontilhado de diamantes negros sobre sua cabeça. Sentia o frio nos ossos, o peito subindo e descendo rápido, o suor nas têmporas. Virou a esquina e entrou na cobertura das árvores. À sua frente, seis figuras se encaravam. Três de costas para ele, semi-curvadas, ronronando baixo mas ameaçadoramente. As outras três eram facilmente identificáveis naquele ambiente alvo.
Ele mesmo. Andriy e Bogdan.
Seus rostos exprimiam o pavor que sentiam numa careta bizarra, eram figuras muito coloridas naquele mundo cintilante. Uma fração de segundo depois as coisas atacaram, cobrindo os poucos metros que os separavam agilmente. Michael se pegou olhando atentamente a luta que se desenrolava. As coisas eram só unhas e dentes, atacando com uma ferocidade inumana. Seus amigos se debatiam, resfolegando no próprio sangue ao terem as gargantas rasgadas. Uma ilha rubi se formara naquele bosque cinzento e de repente Michael se ouviu gritando. Olhou em sua direção no momento em que inciava uma fuga deseperada, correndo em direção a lugar algum. Duas das coisas dispararam atrás dele assim que outras quatro entraram no bosque. Passaram por ele sem vê-lo e dividiram-se entre o banquete e a caçada. Via claramente as coisas, que talvez uma dia tivessem sido humanas, se refestelando de seus amigos. Olhos, nariz, barriga. As partes moles foram sendo arrancadas, partidas, mastigadas, num frenesi de sangue digno dos mais depravados demônios. Sentiu seu estômago protestando e dobrou-se em si mesmo, vomitando de olhos fechados.
Passados os espasmos ele finalmente abriu os olhos e pôde ver que estava debruçado no asfalto grafite, sobre o corpo de um homem já grisalho. Algo rugia dentro de si e a fome tomava conta de seu ser. Nada o impediria de comer. Nada no mundo o faria abandonar aquele corpo. Olhou de lado e viu mais quatro dele aproximando-se do seu banquete. Rosnou em ameaça. O carro virado protegia seus olhos da claridade cortante do poste. Sua boca babava em antecipação ao que viria. Comida.
Mordeu o homem na altura dos olhos, arrancando-lhe o nariz. A carne era doce, suculenta. Num espasmo ele abriu os olhos e quase exprimiu um grito, mas foi abafado pelo som surdo de um baque na cabeça. O sangue lavou o asfalto e pedaços cinza-pulsante espalharam-se pela via. Outro dele abaixou-se e começou a comer avidamente. Mais um atacou as mãos e o restante mordeu-lhe o pescoço. Ele mal engolira o pedaço do nariz quando rasgou a camisa do homem num gesto e atacou a barriga com sua mão em faca, enterrando a mão nas entranhas ainda quentes do cadáver. Comeu até sentir-se saciado, procurando abrigo da luz feroz do dia num beco escuro. E lá adormeceu.
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Na escuridão, um ronronar baixinho invadiu o ambiente. Olhos pequenos, boca pequena, língua ávida. Sangue.
A pequena figura aninhada ergue a cabeça sinuosamente e lambe um ferimento extenso, que vai da cabeça ao pescoço de seu protetor. Agarra-se a ele como uma sangue-suga, extraindo o máximo possível da ferida. Logo apanha uma das mãos nas suas e vislumbra um corte profundo mas pequeno na lateral. A língua percorre toda extensão, desfazendo as barreiras naturais. O vermelho mancha novamente a manga da camisa. E ela suga, como um pequeno vampiro.
Num espasmo o corpo adormecido se põe de pé, arremessando a criança na parede oposta. O rosnar é perturbador enquanto ele se debruça sobre o pequeno corpo no chão. Numa mordida arranca parte da face da criança, que resiste se debatendo. Um soco poderoso afunda o crânio no piso da escada, espalhando o cinza rubro por todo ambiente.
Os sons espalham-se em eco escada acima, denunciando o banquete profano.
Ele come. Como nunca.

Um comentário:

Aldenor disse...

CARALHO!!! VIREI UM MONSTRO!!!