quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Terror - parte 2

Borda oeste da Favela Goblin, Valkaria
Deheon – Reinado

O cheiro ocre da casa golpeou Meredith em cheio, revirando seu estômago no mesmo instante.
Ela perambulou tortuosamente através da cidade por algum tempo, antes de finalmente procurar a pessoa que poderia ajudá-la. Essa entrada do templo em particular era uma das menos usadas pelos cultistas, seja por sua localização improvável, seja pela vizinhança indesejada. 
A favela goblin, na prática um marco de degradação e degeneração, na teoria ícone da “igualdade de direitos” entre as raças sapientes, ficava a uma dúzia de passos do local e o cheiro que exalava impregnava tudo o que tocava. Roupas, pessoas, construções, tudo. Mas hoje Meredith se viu forçada a ignorar os pormenores e engolir o orgulho, a fim de salvar sua vida.


Atravessou a porta que dava para o cômodo dos fundos e foi em direção a parede do lado esquerdo. Estacou de frente para ela, posicionando um nó na madeira do piso entre seus pés, e esticou seu braço esquerdo, tocando o reboco deficiente com a mão espalmada. Pronunciou quatro palavras num idioma profano, tocando a parede com a fronte ao lado da mão aberta e pressionando. A cabeça começou a afundar lentamente seguida pela mão esquerda, e logo todo seu corpo imergia vagarosamente parede adentro como quem afunda numa poça de areia movediça.
A braçadeira de serpente que adornava seu braço esquerdo exercia um aperto excessivo à medida que ela forçava sua entrada no acesso ao templo. “Nada vem de graça” pensou ela, enquanto a sensibilidade de todo o membro ia se perdendo pouco a pouco, acompanhando a travessia.
O outro lado era escuro e seco, com uma escadaria começando a dois passos da entrada. Meredith ergueu o braço direito e apanhou, no alto, uma tocha num archote na parede. Segurou a fita que assomava-se na extremidade servindo de pavio e desenrolou-a, revelando a chama azul-amarelada a cada volta. A luz descortinou a escadaria à sua frente e a parede lisa às suas costas, adornada apenas pelo símbolo do corruptor no centro e uma série de símbolos em espiral ao redor dele, preenchendo toda a superfície.
Não estava mais próxima à favela goblin, na verdade nem sabia se ainda estava na cidade de Valkaria.
Começou a descida familiar em direção ao templo, imaginando o destino que daria ao ouro que receberia pela criança. Zsolt havia sido bastante específico dessa vez: “uma criança nascida com sangue aventureiro, fruto de alguém com espírito forte, que tenha sobrepujado a morte e domado o destino. Não podia ter mais que meio ano de vida, o sexo não importava.”
O manto de Meredith servia bem a esse propósito. Mulher idosa, viúva, mãe de duas filhas que moram fora de Deheon. Sempre solícita, ajudava a pajear bebês e crianças por uma módica quantia semanal. Tinha acesso livre ao templo de Khalmyr e Valkaria, ainda mais após a morte de seu marido na ofensiva de Crânio Negro, ano passado. Foram-lhe rendidas honras, ajuda da coroa, tudo para garantir uma “morte serena” quando a hora chegasse.
Toda essa história de vida, todo esse cenário era extremamente propício ao acordo que tinha com Zsolt. Crianças por ouro, ouro por influência, influência por poder. Mas, sobretudo, essa vida dupla arraigava cada vez mais seu status na Igreja de Sszzass. A cada seqüestro, a cada assassínio, a cada corrupção de lares e valores, a cada ação bem-sucedida seu status crescia e se consolidava, tornando-a uma das colaboradoras mais influentes e poderosas do templo de Valkaria. “Nada vem de graça”, pensava ela durante a descida.
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Sudeste do Distrito de Baixo Comércio, Valkaria
Deheon – Reinado

Zsolt recostou-se em sua cadeira de espaldar alto.
O tecido estava gasto e corroído em alguns pontos, mas isso parecia torná-la ainda mais confortável. A sala caiada deixara de ser branca a muito, sob ação do tempo e da falta de cuidado. Sua antiga mesa interpunha-se entre ele e seus clientes, apropriadamente modificada para armazenar uma arma de fogo carregada e uma espada curta magificada, ambas frutos de seu sucesso no ramo. 
Apenas negócios. 
Não apreciava o lugar que chamava hoje de sede, mas por hora vinha servindo maravilhosamente bem. Era amplo, localizado em um distrito comercial de freqüência duvidosa, numa rua movimentada que permitia o livre trânsito de seus associados. Como tudo nessa parte da cidade, segurança e discrição tinham seu preço bem definido e bastava o pagamento no dia certo, nenhum ouvido escutava nada, todos os olhares se desviavam e nenhum caminho levava a lugar algum.
Na maioria das vezes, seus “requerimentos”, como ele gostava de chamar, chegavam até ele por meio de seus associados. Nenhuma palavra era dita e nenhuma letra escrita. Nada era endereçado diretamente a ele ou mencionava sua existência em nenhum nível. Bastava conhecer as pessoas que conheciam outras pessoas e se ganhava acesso à guilda e a seus favores. E claro, ouro ajudava enormemente.
Mas mesmo ele, sozinho lá no topo, tinha seus clientes especiais. Um número seleto de pessoas que possuíam acesso direto a ele, a qualquer hora e em qualquer lugar. Pessoas que valiam a pena conhecer e mais, que valiam a pena ter-se em dívida. E foi uma dessas pessoas que acabou com o marasmo daquela tarde, fazendo contato direto com ele através magia.
Emmilian Urich, de Tollon.
Arcano louco. Completamente depravado. Ser humano da pior espécie. Ridiculamente rico e influente entre os de sua espécie.

- Zsolt, preciso de um favor. – disse ele excitadíssimo. Sua voz tremia com uma euforia contida, deixando Zsolt ligeiramente perturbado.

- Meu caro Urich, velho amigo. Em que posso lhe ser útil? – disse Zsolt, já iniciando a barganha.

- Fiz uma descoberta fantástica e preciso de um último ingrediente para a conclusão dessa empreitada. Desconfio que apenas você possa me conseguir o necessário.

- E o que seria Emmilian? – destilou as palavras feito uma serpente próxima do bote – O que precisa e com que urgência? Todos os caminhos trazem a Valkaria e aqui, tudo é possível...

- Preciso de um infante. Mas não qualquer infante. Preciso que tenha sangue aventureiro e de preferência que seja de um aventureiro experiente, poderoso. Alguma alma forte, que já tenha enganado a morte e ludibriado o destino. No máximo com meio ano de vida, quanto mais pueril melhor.

- Filho de aventureiro? Ainda mais, um aventureiro poderoso? Hahahaahaha – gargalhou genuinamente Zsolt, ante a demanda um tanto quanto descabida.

- Não ria de mim Zsolt. Sabes que posso arcar com minhas demandas. – disparou Emmilian, deixando escapar uma nota de raiva na voz – Seja com ouro, seja com outros artigos raros e valiosos.

- Acalme-se velho amigo. Não quis ofendê-lo de maneira alguma. Apenas estranhei a requisição e claro, não será fácil. Aventureiros poderosos tendem a desgostar quando tem seus descendentes subtraídos de seu convívio. E tendem ainda a procurar os responsáveis, às vezes indo muito, muito, muito longe. Você tem certeza?

- Claro que tenho Zsolt. Mesmo que me encontrem, depois do que descobri isso não fará mais diferença.

- Tudo bem Emmilian. Mas isso não te custará nada barato. Depois de atendê-lo, infelizmente, existe a enorme probabilidade de que eu seja descoberto caso não suma por uns tempos. E uma organização do tamanho da minha não some facilmente, a não ser que as pessoas certas sejam pagas, caladas e cegadas. E isso custa muitos, muitos tibares.

- Eu entendo Zsolt. Diga o seu preço que eu faço o pagamento. Da maneira de sempre, limpo e rápido.

- Cinqüenta mil tibares de ouro. Em espécie dessa vez. E depois disso não me contate pela próxima estação.

- Combinado. O pagamento será feito da forma de sempre, nas próximas horas. – o humor de Emmilian havia melhorado consideravelmente. Toda tensão se esvaiu de sua voz no instante em que o outro aceitara o trabalho.

- É sempre um prazer fazer negócios com você. Sinto-me compelido a desejar-lhe boa sorte, uma vez que eu cumpra sua demanda. Onde você deseja que seja feita a entrega? No local de sempre?

- Não, não no local de sempre. Fui forçado por poderes acima da minha competência a deixar o belo reino da madeira. E, como destino natural, refugiei-me no reino da intriga. Na pior cidade do reinado. Chega a ser fascinante a naturalidade com que os nativos acolhem a corrupção. Se o deus serpente tivesse uma morada em Arton, esta seria provavelmente por aqui.

- Combinado meu caro Emmilian. Conseguida sua mercadoria faço contato, transmitindo a data mais provável de entrega. Foi um enorme prazer. E outra vez, boa sorte. Você vai precisar.

- Obrigado. Usarei essa sorte na conclusão de meu experimento. O resto não importa mais. - e a conexão de esvaiu, perdida na distância entre os interlocutores.

Zsolt debruçou-se na mesa, satisfeito pelo ótimo negócio e um tanto quanto receoso, ante as conseqüências. O que Urich estava tramando? Sequer barganhou custos ou condições. Devia ser algo grande.
Escorregou a gaveta central para fora de sua morada e apanhou alguns papéis, o último exemplar da Gazeta do Reinado e um espelho de prata, de aproximadamente um palmo de diâmetro. Um filho de aventureiro experiente. Valkaria era o berço da aventura, lar da deusa da ambição, centro de civilização. É claro que haveria muitos aventureiros experientes residindo na cidade. Mas como encontrar um descendente de um deles que se enquadre no perfil desejado por Urich?
Era hora de fazer contato com suas associadas, seus olhos e ouvidos nas casas abastadas. Amas secas, damas de companhia, cozinheiras e copeiras. A base da pirâmide. Serviçais. Era incrível como sempre passavam despercebidas, sejam seus patrões quem fossem.
Folheou os papéis decifrando mentalmente os caracteres estranhos perfilados de uma borda a outra. A língua da guilda, criada para garantir o sigilo das pessoas e operações. Consultou calmamente os nomes das mulheres que trabalhavam em tais casas. Sempre havia um aventureiro na família, uma forma de conseguir muitos tibares livres de taxas e impostos, ou de lavar tibares escusos. Paralelamente abriu a Gazeta, consultando os feitos e notas, nomes de pessoas famosas que iam e vinham de Valkaria o tempo todo. Haveria alguém. Sempre havia.
Seus olhos foram atraídos para a notícia do desaparecimento de Gistaine Du’Champs, líder e fundador dos Mosqueteiros Imperiais. Era um baixo nobre na verdade, mas que gozava de certa influência nos círculos de aventureiros. Os mosqueteiros sempre saíam em missão, além de conhecerem muitas pessoas em muitos lugares. Correndo o restante da notícia, notou que ela mencionava o pesar da família, a tristeza dos amigos e principalmente a indignação de Jean-Luc Du’Champs, filho de Gistaine, mosqueteiro imperial e líder de uma tal Confraria da Aventura, com a atual situação.
Voltou à sua lista, consultando a possível existência de alguma associada na residência dos Du’Champs. Encontrou um nome, Marie. Dama de companhia da esposa do tal Jean-Luc. Ela poderia fornecer-lhe mais informações sobre essa Confraria além de alguns nomes, ouvidos atrás de portas e paredes, de contatos de Gistaine e Jean-Luc. Continuando seu passeio pela lista, decidiu por incluir no comunicado algumas mulheres que trabalhavam em templos de deuses aventureiros como Valkaria, Khalmyr, Lena, Keen e Tauron. Sempre havia um filho inconveniente, de alguma masmorra solitária ou noite fria, deixado aos cuidados do templo para que não interferisse na excitante vida aventuresca de seus pais. O mundo precisava de cuidados constantes que ninguém, além deles, era capaz de prestar. Idiotas.
Apanhou o espelho e uma pena, juntou seus papéis e os acomodou num dos cantos da mesa. Estendeu o braço e furou na altura do antebraço, alcançando uma pequena veia que verteu um filete de sangue rubro. Molhou a ponta da pena e escreveu no espelho uma mensagem, convocando todas as associadas capazes a atender ao chamado.
“Recorro a tão inoportuno meio por exigir urgência. Traga-me um infante, meio ano de vida no máximo, filho de aventureiro experiente, sexo não importa. Dois mil tibares de ouro, pagos no ato. Têm três dias. Zsolt.”
Disse um par de palavras mágicas e viu o pequeno texto sumir na superfície polida do espelho. Não era seu meio habitual de contato uma vez que ditas as palavras e mentalizadas as pessoas, a mensagem se materializaria na primeira superfície reflexiva que a pessoa olhasse. Arriscado mas adequado à situação.
Agora era cuidar para que a guilda desaparecesse por algum tempo. Reclinou-se novamente na cadeira e pôs-se a fazer contas, calcular quanto suborno seria necessário para que ele sumisse, mas não perdesse a influência que conseguiu nesses anos de operações. A rede era bastante extensa e ele projetou um custo aproximado de dez mil tibares de ouro. Com isso sobrariam ainda vinte e oito mil tibares dourados a serem gastos nessas longas férias forçadas.
Quem disse que o crime não compensa?

11 comentários:

R-E-N-A-T-O disse...

Maldito seja Sszzass! Continua bom.

S i n n e r disse...

Auhauahahua
Esfusiantemente prolixo.
Comento amanhã, meu turno tá no fim.
Abraços e adièau.

Marins disse...

Vou colocar classificação por idade nesses seus post's. acabou a época de RPG leve?
realmente nossas visões são mt diferentes.

É acho q minha mulher e filho não foram para a casa dos pais... maldito ego.
hehehe

Capuccino disse...

vamos por 18+, por favor AHuAHu XD

Por isso nao é recomendável ter familiares nos jogos de daniel e de renato ^^

Nos de Aldi tbm =p

E nos de marins...

E nos meus XD

S i n n e r disse...

Olla senhores.
Classificação nos meus posts? Nem acho que esse tenha sido 18+.
Bem senhores, deixem-me explicar um ponto aqui.
Entendam que o que estou narrando é o ponto de vista e os atos do vilões do cenário. E normalmente vilões são maus e vis e praticam atos abomináveis pelas pessoas "boas". Acho interessante para a atmosfera do jogo que o jogadores tenham essa facilidade, que saibam o que, como, onde e quando os vilões se movem. Eu acho que ajuda a vocês e a mim, mas posso estar enganado...
E, além disso, a proposta do jogo que assumi era de serem "Os Útlimos Dias". E eu o assumi justamente pela minha visão peculiar e minha capacidade de criar vilões que realmente seriam odiados pelos personagens. Sem leveza aqui.
É claro que isso não denuncia uma incapacidade de mestrar algo leve (e eu classifico Aurora e RH por exemplo, como jogos leves, quando houveram sessões) mas se a proposta é "botar pra fuder", vamos que vamos.
Não considere Marins, e aqui me dirijo a você em especial, uma perseguição ou algo do tipo. Narro eventos passados (afinal a narrativa ainda está no dia da morte da esposa de Igan) que já se desenrolaram e todos sabemos de quem foi o bebê "vendido". A fama também possui aspectos negativos (como os mostrados ingame e aqui, nas narrativas) e ter ou não família não é o problema aqui.
Fiquem livres para criticar a forma como as coisas estão indo a qualquer momento e, caso não estejam satisfeitos, tentaremos chegar num ajuste de pontos de vista ou ainda num acordo de transferência de mestragem outra vez.
Por hora sem mais. Hoje a tarde mais uma parte (que espero ser a última, porém a história ainda me instiga a mais páginas).
Abraços e adièau.

PS.: Parabéns outra vez Renato! Na volta vamos bebemorar! \o/
PS2.:Já ultrapassamos em dois os posts do ano-recorde de 2008. E ainda estamos em novembro. YAY! Parabéns a nós.

Aldenor disse...

Caralho, como odeio Sszzaas!
Muito bem escrito, como sempre.
Eu daria uma classificação mais amena, como +14 anos AHAHHA

E aventureiro ter familia não é exatamente sinônimo de tomar no cu. As vezes acontece, apenas...

Marins disse...

Não achei perseguição, só o ego do Jean Luc q direciona... ele acredita q a esposa foi para a casa dos pais e não se preocupou em verificar. hauauuauauh
e lendo o post é obvio q poderia ter sido o filho dele sequestrado.

xD

Ps: Parabéns Renatinhooo

R-E-N-A-T-O disse...

Obrigado amiguinhos! ^^

Classificação para coisas que só nós lemos? Huahauha...
Pra mim o jogo tá ótimo e quero continuar. Abraços.

Aldenor disse...

Parabéns, renatinho!!!

Marins disse...

Bom... tenho q informar agora é oficial... meus alunos tb lêem o blog.

Estavamos conversando sobre RPG, e um dos trabalhos deles envolvia o assunto e "bingo, DNA de dinossauro!".

=D

hauhauhauhuahuha

Aldenor disse...

Agora se faz necessário a censura de idade! AHUAHUAHUAHUAHUA zoando!