quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Fé e Traição


Mercado de Escravos, Thartann
Ahlen - Reinado - 15 anos atrás

Imundície. Suor. Sangue.
O cheiro era tão forte que Tathyana teve a impressão que nunca estaria limpa novamente.
Estavam atrás do galpão onde os escravos eram mantidos cativos até o evento do leilão. Mais especificamente, atrás da área onde eram lavados a golpes de jatos d'água mágicos. Isso não era exatamente indolor porém funcionava maravilhosamente. 


E os capatazes apreciavam o show.
Henry estava parado ao lado da mulher, ignorando suas crescentes reclamações e seu próprio asco por estar ali. Seu contato dissera que seu empregador estaria ali, ao badalar do fechamento oficial do leilão. Isso os presentearia com mais alguns minutos de náuseas e discussões veladas.
Como num passe mágica, o badalar do término do leilão transformou completamente a face do casal. As risadas descompromissadas deram lugar a um silêncio sério, os modos exagerados, os abraços e os toques explícitos sumiram subitamente, deixando apenas a imobilidade do predador. A leveza do clima entre os dois foi preenchida de tensão e num piscar de olhos, a mulher desapareceu entre as sombras lançadas à rua pelos archotes.
Apenas uma figura esperava imóvel, dentro do balé de luz e sombras dançado pelo fogo, e em algumas batidas de coração avistou um homem cruzando o pavimento da rua em sua direção. Pelos trejeitos, pela forma de caminhar e pela postura no andar, não era um dos ladrõezinhos da cidade. Muito menos um salteador, que ataca damas e cavalheiros indefesos nas sombras das vielas. Devia ser seu empregador.
Retesando os músculos ao máximo, Henry preparou-se para qualquer imprevisto. 
Correr. Lutar. Matar. Fugir. 
Sua vida até aqui o havia mergulhado numa infinidade de situações, e ele sempre gostara. Sempre escapara. Sempre triunfara. Mas agora tinha muito mais o que perder do que apenas um punhado de sangue e suor, tinha um filho esperando por ele. Alguém para treinar e assistir, para assombrar e divertir. O pequeno David Crown, Davie, seu herdeiro.

- Olá mercador. Não são tortuosos os caminhos da fortuna para aqueles que crêem? - disparou o homem à distância de três ou quatro passos, já ocupavam a mesma calçada. Era a senha.

- Cem anos de viagens não se comparam ao instante da venda. Ao selamento do acordo. Ao peso do ouro nos meus bolsos e ao brilho do cliente satisfeito.

- Olá John - era esse o nome que Henry adotara para aquele encontro - Muito me agrada um negociante capaz de cumprir horários. Eu sou Renaud. Vamos caminhar - e indicou a via a frente deles com um meneio de cabeça.

Caminharam juntos, alheios ao trânsito de pedestres e carruagens. Conversavam animadamente, como velhos conhecidos em direção à uma taverna qualquer, num código que só eles entendiam.

- Preciso saber o preço final que você me cobraria pra trazer a Ahlen aquele condimento de que preciso - perguntou casualmente Renaud.

- Bem meu nobre amigo, em se tratando do caminho sinuoso o qual preciso trilhar, das pessoas que preciso ver, é bem possível que eu não lhe traga o condimento. Mas posso lhe dizer se é possível, quando e por que valor - respondeu John-Henry.

- Isso pra mim basta a curto prazo, estimado mercador. Eu sei da raridade do produto e sei que quem possui não vende assim, fácil. Mas me diga, quanto precisa para me dar ao menos esperança?

- Bem Renaud, quinze quilos seriam o justo. Mais despesas de viagem, claro.

Pararam em uma encruzilhada, bem na fronteira do centro com o bairro portuário. Era perigoso para ambos caminhar além daquela linha imaginária tratando de negócios, tão casulamente.

- Tudo bem John. Está fechado então - e então apanhou algo no bolso do paletó e estendeu a John-Henry. Um brasão do tamanho de uma ameixa, prateado, com um intricado padrão percorrendo sua superfície - Procure pelo Estrela do Leste no cais. Lá estará sua carona e sua paga equivalente. Não me desaponte.

E seguiu a linha imaginária que permeava o bairro portuário, em direção ao outro lado da cidade. Em poucos instantes desapareceu, coberto pelas sombras do caminho.
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Interior da Caverna de Beluhga 
Montanhas Uivantes - Reinado - um mês depois

O frio estava além do imaginável.
Nunca, em toda sua sua existência, o jovem casal esteve tão próximo da morte certa. Olhando-a assim, tão perto, eles puderam sentir todo o frio que emanava daquela alma. Era de verdade a deusa do frio. O inverno encarnado. O gelo eterno. 
Beluhga. A Rainha dos Dragões Brancos.
De pé, olhando para o jovem casal acuado contra a parede mais ao fundo do seu covil, uma mulher linda, de finos traços élficos, cabelos impossivelmente alvos e olhos sem íris. Sua face completamente fleumática revelava apenas a ausência de calor no seu coração. Na sua existência.
Atônitos, eles viram reluzindo levemente, atrás e sobre a mulher, como quando algo passa de relance aos olhos, a imagem de um dragão branco enrome, maior do que a vida, maior do que o tempo, capaz de congelar até mesmo sua existência breve com o frio da sua alma.

- O que fazem aqui, tão fundo em minha morada? - perguntou a mulher, ainda sem mover um músculo sequer.

O homem, Henry, adiantou-se em falar. Sua mulher já estava hipnotizada pela figura da dragoa e ele precisava tirá-los dali.

- Viemos apenas vislumbrar sua existência, admirar sua morada, ó Deusa do Frio - disse Henry, com seu melhor sorriso na face e sua mais fervorosa prece na mente.

Dando um passo em direção ao casal, pôde-se ver reluzir em conjunto com a imagem sobreposta uma coleira, gêmea nas duas imagens, ligada a uma extensa corrente que se perdia no fundo da caverna.

- Sua vida vale a visão, mortais? Então vislumbrem a deusa em toda sua magnitude - e assim ela piscou e transmutou, não mais que por dois ou três segundos, tempo mais do que suficiente para aniquilar mentes mais fracas e congelar por inteiro corpos menos experientes. Mas os humanos permaneciam lá, vivos e estarrecidos. Sua fé era verdadeira e inabalável. Merceiam deixar o covil vivos.

- O-O-Obrigado minha deusa - gaguejou Henry -, por tão explêndida demonstração. Jamais esqueceremos de vossa figura. Professaremos vosso nome em todas as direções, aos quatro ventos, por toda Arton. Obrigado minha senhora. Obrigado - então Henry prostrou-se, cabeça tocando o chão gélido, agradecido pelo horrores que viu e foi forçado a ver em toda sua curta vida. Não fosse sua capacidade de blindar sua mente contra coisas que a destroçariam, estaria louco. Louco e morto.

Olhou para Tathyana e agradeceu em seu íntimo pela esposa também estar viva. Agora era só sairem dali, talvez não da mesma forma que entraram, mas ainda assim, vivos. Antes que pudesse erguer sua testa já dormente do chão, Beluhga falou novamente.

- Onde desejam estar fiéis devotos, quando não em minha presença? Onde sua fé é mais necessária? Onde preciso ser testemunhada e difundida? A deusa agora lhes concede um milagre.

- Somos de Korm, senhora invernal. Lá professamos sua fé contra o Grande Chifre. Lá precisamos de suas bençãos - disse Tathyana, para alívio de Henry. Na sua cabeça vinha apenas o nome do lar. Morno e quente lar. Malpetrim.  Malpetrim. Malpetrim. 

Jurou amar aquela mulher até o fim da sua existência e além, pela sua mente afiada.

- Que assim seja. Adeus.

ZIiIiIuF!
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Residência dos Livanov, Thartann
Ahlen - Reinado - dois meses depois

- Excelente. Obrigado Youssef.

O Duque Abel Livanov brincou com a carta em suas mãos. Claro, chamar de carta era eufemismo, estava mais para um arremedo de bilhete. Na face frontal, um símbolo selado a fogo de uma mão espalmada no centro de um círculo identificava o remetente. Albert Corentin, líder da Mão Espectral de Valkaria, um dos braços criminosos que controlavam a temida Adaga de Midron. 
 "Se quer um trabalho bem feito, contrate o melhor."
 Abriu desleixadamente a carta-bilhete, antevendo seu conteúdo. Leu calmamente, deleitando-se com cada linha, cada letra da grafia rebuscada de Albert:

"Caro Renaud,
Tenho em minha posse informações de seu interesse. 
Receio que sua encomenda não poderá ser entregue porém, ela existe de fato. Ofereci em sacrifício o belo casal de raposas que me mandou caçar, espero que não se importe. 
Foi um ótimo espetáculo e uma gloriosa caçada. 
Envio juntamente com a carta seu estimado brasão assim como a garantia que não terá jamais problemas com  raposas.
Minhas mais altas estimas de boa sorte,
A. C."

Estava feito, finalmente. Os desgraçados sortudos encontraram. Conseguiram, no fim. Talvez fosse mais justo tê-los deixado viver mas, há justiça no mundo dos homens?
Ele existe! 
O grilhão existe afinal. Não poderia ter recebido mais auspiciosa notícia. O problema era usá-lo, uma vez que ele jaz no pescoço da dragoa. Mas isso era um problema para depois, para outro grupo de aventureiros, para outra contenda. Por hora estava satisfeito.
Os únicos que sabiam da sua existência e da sua ambição, os pobres Crown de Malpetrim, estavam inapelavelmente mortos. Seus planos poderiam prosseguir. Seu conhaque estava magnífico, seus negócios prosperando e sua mulher, grávida.
Tinha sido um excelente mês.

14 comentários:

R-E-N-A-T-O disse...

Algo me diz que os Crown estão vivos ainda né?! Hehehe... E provavelmente há pistas nas Uivantes de ondem encontrá-los. Bom saber...
Bom conto, continua bom.

Aldenor disse...

Achei a Beluhga um tanto malvadinha... mesmo uma dragoa, ela é neutra e bondosa hahaahaha.

Vivos? Eles haviam surgido como fantasmas depois daquela época em que os mortos se ergueram de suas tumbas quando o Panteão ficou com 19 deuses.

Pra mim, eles tão mortos... foram sacrificados aí pelo tal Albert.

Maneiro o texto!

Capuccino disse...

parece q teremos mais gente nova no pedaço ^^


Essa beluhga ta mt gostosa, imaginei mo loirona nordica, jesus.

Jesus nao, odin XD

Aldenor disse...

Caralho, vcs não sabem ler. AHAHAHAHAHAHAHAHA

R-E-N-A-T-O disse...

Apareceram como fantasmas, mas nem lembro disso, Vc só narrou isso e não mestrou. E minha imaginação é fértil. Fantasma pode ser ilusão! haha

Aldenor disse...

AHAHHAAH!
Verdade! AHAHAHA

Marins disse...

gostei.

jogo domingo, donde?

Aldenor disse...

Está escrito: Daniel's Lair

Dudu disse...

Arrasa!!!

Meus pais tão vivos!!
E eles são fodas!

To dentro do jogo. Até amanha, beijo!

zizoo disse...

esses posts menores no blog sao melhores do que os pergaminhos interminaveis qu vcs arrumavam

Aldenor disse...

Vc tem que clicar no "Agora Termina essa porra..." pra ver o resto do "pergaminho interminável"... ahahuahuahuahua

Unknown disse...

ata que pena e eu achando que na era do twitter onde todo mundo consege se expressar com poucos carcteres vcs continuam escrevendo livros semanalmente

Lucas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lucas disse...

Pronto agora oficialmente eu estou seguindo o Blog!