sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Juiz, júri e executor-parte 2

Centro-sul da cidade de Valkaria
Deheon – Reinado

Rúbia ouviu o bebê chorar quase ao mesmo tempo em que Meredith. A senhora se adiantou, apanhando seu rebento nos braços e despejando “calmas” num tom de voz muito afável. Por um segundo Rúbia acreditou que tudo estava bem, mas essa sensação foi destruída no instante em que ela sentiu a aura opressiva, fria, hostil.
Medo.
Percebeu o sentimento se espalhando pela face da idosa, levando-a da calma materna ao mais puro desespero animal de preservação da vida. No espaço de uma batida de coração, todo seu mundo veio abaixo.


Adam chutou a porta, que se desfez em pedaços sob sua bota de metal.
Vislumbrou parada, perplexa no corredor de acesso aos fundos da casa, do lado esquerdo da sala de entrada, uma mulher muito bela, no alto de seus vinte e poucos invernos. Seja quem fosse não pôde reagir a tempo de escapar do primeiro tiro de Desespero. Ela o recebeu no meio do movimento de esquiva, ainda no ar, mas nada supera a velocidade de uma bala. Adam deu três passos casa adentro, ganhando a sala de acesso a tempo de ver uma mulher baixa e atarracada se virando em direção à janela com um embrulho nos braços.
O filho do traidor.
Tinha que matar todos naquela casa. Antes mesmo de pensar seu braço esquerdo já havia apontado Medo em direção à mulher, cruzando-o sob o abdome, e disparado um tiro certeiro, que jogou tanto a mulher quanto a criança de encontro ao fundo da sala, próximos à lareira.


Rúbia sentiu uma dor aguda no braço esquerdo. Todo o flanco daquele lado estava banhado de sangue, tingindo sua camisa de algodão de um vermelho vivo, brilhante. Como um simples ferimento sangrava tanto? Já recebera cortes e flechadas piores em sua vida, mas isso, isso era diferente. E doía como o inferno. Ouviu um segundo estampido quase ao mesmo tempo em que se chocou com o assoalho. Meredith. Seu filho. Precisava salvá-los.
“Khalmyr, restaure meu braço, feche minhas feridas, me abençoe.”
Sentiu a mão de deus sobre si e a dor desapareceu num instante, clareando a visão e aguçando os pensamentos. Meredith.
Inclinou-se, esticando a mão através da porta o quarto de onde saíra, apanhando seu velho escudo que jazia encostado na parede à espera de pregos para fixá-lo. Só teria essa chance, tinha que dar tempo à Meredith para fugir e salvar seu filho, seu fruto. Atirou o escudo de súbito em direção ao pistoleiro, apanhando-o de surpresa e arrancando uma de suas armas com o impacto. Regozijou-se em ter atraído a atenção para si e orou pelas vidas da ama e da criança, antes de ver a face de seu algoz. Não se parecia com ninguém e se parecia com todos ao mesmo tempo. Os olhos mortos e a respiração controlada contribuíam para o aspecto demoníaco do homem. Da criatura.
Ele avançou firme em sua direção, as esporas tilintando a cada passo, denunciando suas intenções sinistras. A menos de dois passos de distância ergueu a mão esquerda e apontou a arma em sua direção, atirando duas vezes em seu abdome. O impacto a jogou de volta ao chão, colidindo contra si como se fossem pedras de catapulta cuspidas pela arma. Ela olhou novamente o homem, a visão turvada pela dor lancinante no baixo ventre, e arfou palavras desconexas.

- Onde está Igan, cadela? Vim por ele e ele não vai escapar. Esconde-se no quarto por acaso? – disse o homem com escárnio. Sua voz tinha um timbre oscilante, mutante, indo do familiar ao desconhecido em cada letra.

Ele atravessou sobre o corpo agonizante de Rúbia e vislumbrou o quarto. Ele permanecia calmo e arrumado, como se ninguém tivesse estado ali nos últimos dias. Virou-se outra vez para a mulher, erguendo a bota em direção a sua garganta.

- Onde está Igan Kulenov?!? Onde está aquele homem? Eu vim até para mandá-lo pro inferno de Leen! Vim até aqui por vingança, por sangue e por ódio! Diga-me onde ele está ou vai sofrer ainda mais!  – e colocou a espora no pescoço de Rúbia, pressionando enquanto abria um talho em seu pescoço.

Meredith foi acordada pelo remexer do pequeno embrulho em seus braços. Pela Serpente, tinha caído sob a criança. Nenhum dano aparente. Olhou em direção ao corredor e viu o homem atravessar sobre o corpo arfante de Rúbia e olhar o quarto do casal. Sua atenção estava toda voltada para a mulher. 
"Então porque ela sentia aquele medo sobrenatural? Porque suas pernas fraquejavam e ela havia molhado as ceroulas? Moveu-se e sentiu uma pontada aguda nas costas. Ao que parece fora atingida, mas não devia ser nada grave. Ele teria errado de propósito?"
Pôs-se de pé o mais silenciosamente que conseguiu e seu olhar foi outra vez atraído para a pobre mulher. Olhava suplicante em sua direção, os olhos indo dela para a lareira com uma incrível sensação de urgência. Quando acompanhou o olhar da mulher pôde notar que sobre a lareira jazia uma bela espada, adornada em diversos pontos da lâmina com intricadas inscrições. Entendeu a mulher no instante em que o homem falou novamente. E seu sangue gelou nas suas veias.

Rúbia sentia cada fibra de seu abdome doer ferozmente. Algo parecia querer sair de dentro dela através dos ferimentos. Sentiu-se perdendo a batalha contra a morte, como acontecera poucas vezes em sua vida, e desesperou-se. Ouvia ao longe a voz do homem escarrar alguma coisa, talvez um escárnio, talvez uma ameaça. 
"O que ele queria com ela? Porque a atacara e a seu filho?"
Por entre o nevoeiro que encobria sua visão, pôde ver Meredith se erguendo cuidadosamente ao lado da lareira, o mais silenciosa possível naquela condição. Pôde notar o momento exato em que ela conferiu seu filho, em que teve certeza que ele estava bem após o ataque inicial. Nesse instante uma idéia atravessou sua mente e seu coração foi tomado de esperança. Podia detê-lo aqui. Podia atrasá-lo. Podia salvar seu filho.
Pronunciando palavras surdas e olhando significativamente para Meredith, Rúbia tentou dizer-lhe que tinha um plano. Que podia salvá-la. Bastava que ela entendesse. Entendesse e jogasse sua espada para ela. Sua fé faria o restante. Sua fé retardaria o pistoleiro e quem sabe, matá-lo-ia.
Mas então sentiu algo pressionar seu pescoço, do lado direito da garganta, e uma dor aguda arrancou um grito de terror do seu íntimo. Seria degolada se Meredith não fizesse algo.
“Khalmyr, dê força a ela. Por favor, eu preciso de sua ajuda. Eu preciso de Temperança. Eu preciso da minha espada.”

Meredith foi acordada de seu transe pelo grito agonizante da mulher. O homem rasgava sua garganta com a espora da bota, enquanto observava a expressão de desespero em seu rosto.
Era sua chance.
Fugir ou ficar? Ajudar ou trair?
Analisou por um instante suas alternativas. Se fugisse o homem decerto a alcançaria e talvez isso nem fosse preciso. Afinal ele tinha armas de pólvora. Podia matá-la a uma distância considerável, sem sequer sujar suas mãos. Suas pernas já não eram mais as mesmas e correr estava fora de cogitação.
Caso ajudasse a mulher e a entregasse sua espada, perderia uma excelente oportunidade de agradar seu deus. Afinal, queria melhor traição do que aquela? Sszzass ficaria orgulhoso de sua servidão, mas isso valia sua vida?
Decidiu-se e estendeu a mão em direção ao suporte da arma. Era pesada, mas familiar, parecida com a que seu marido deixara pela casa tantas vezes. Podia erguê-la e até mesmo manejá-la, nos tempos idos, sendo fácil arremessá-la em direção à mulher. Fez o arco do movimento e orou com todo o fervor do seu ser para que a espada alcançasse a mulher, talvez lhe garantindo momentos preciosos de vida. Talvez lhe garantindo a fuga.
Acompanhou a trajetória da espada e um instante depois de tê-la jogado teve a certeza que a mulher apanharia. Era chegada hora de agachar-se e esperar que a paladina operasse um milagre.

Adam já se aproximava da garganta da mulher quando seu grito foi interrompido pelo baque de alguma coisa pesada, que atiçou seus instintos de sobrevivência. Como um relâmpago a mulher girou uma grande espada sobre o corpo, quase lhe cortando a perna. Ele sacou ainda mais rápido Malogro de sua bainha às costas, interceptando o ataque inesperado da mulher e saltando pra trás no mesmo movimento, livrando o corpo da mulher de seu aperto fatal.
De alguma maneira ela conseguira sua espada e agora se ajoelhava, usando a espada como apoio. Num instante ocorreu-lhe que ela era uma igual, que era ela igual a Igan, uma paladina. Tinha que matá-la antes que ela pedisse ajuda, tinha que matá-la antes que seu deus interferisse e mudasse o rumo da luta.
Trocou Medo com Malogro e se preparou para o ataque. Já era tarde, a vadia já mexia os lábios em oração e Khalmyr iria entrar na luta. Que assim fosse então. Ele a mataria quantas vezes fosse preciso, mesmo que seu deus viesse em pessoa a Arton tentar impedi-lo. Ele vingaria a todos.

Rúbia apanhou a espada no momento em que ela atingiu o chão a seu lado com o cabo. Foi um belo arremesso Meredith. Queria poder dizer-lhe isso algum dia. Aproveitando a inércia da posição girou a espada num arco amplo sobre seu corpo, mirando as pernas de seu agressor. Com sorte causaria algum dano, mas a intenção primordial era livrar-se da sua bota e seu aperto fatal. Ele pulou de lado ao mesmo tempo em que interceptou seu golpe com uma espécie de espada curta, um tipo de facão. Como ele a apanhara tão rápido? Não interessava mais.
Usou a espada como apoio e ajoelhou-se, tocando a balança incrustada na guarda com a testa, orando.
“Meu deus, minha luz. Lorde do meu corpo, senhor da minha alma, dê-me força, dê-me fogo, dê-me seu poder para que eu traga justiça. Faça-me seu braço, faça-me sua espada, faça-me instrumento de sua glória. Sou sua para todo sempre, permita-me que eu levante uma vez mais, me aqueça, me ilumine, me acenda como uma estrela, que cintila mais brilhante do que nunca antes de morrer.”
- Khalmyr! – gritou ainda de olhos cerrados e uma luz azulada inundou a sala, sendo absorvida num instante pelo seu corpo. Órgãos foram curados, tecidos refeitos, ferimentos fechados. Seus olhos cintilavam numa luz contida, emprestando-lhes uma consistência parecida a de cobre derretido. Ela ergueu-se mais uma vez, mais poderosa do que nunca, pronta pra varrer esse maldito homem da face de Arton.

6 comentários:

Capuccino disse...

Porra, terminou no climáx! AHUAAUAHUAUAHuA


Rúbia, ta ta ta

Rúbia, ta ta ta =p

Aldenor disse...

É, mané. Adam NPC Brimstorm é mt poderoso.
Meredith é uma devota de Sszzaas? Que porra é essa? Rúbia não sentiu o mal nela?

R-E-N-A-T-O disse...

Aldenor, vc já foi traído por uma clériga de Sszzas e com um paladino no grupo. Basta uma simples magia de segundo círculo para enganar um paladino: "Dissimular tendência". Alias é magia do domínio da enganação tb.
Essa magia de paladino tb é fodástica. =X Rúbia era picuda tb! Pelo menos não morreu em vão já que o rebento não tomou tiro e por pior que esteja nas mãos de uma seita maligna, ainda está vivo e há tempo para o resgate.
Tenso. Mt tenso.
Continua logo! To curioso! hahaha

R-E-N-A-T-O disse...

PS: Achei a imagem caída. É um anjo da morte ou era pra ser um sszzazita?

S i n n e r disse...

Olla senhores.
Respondendo às perguntas:
- O personagem não se "enfodificou" depois que virou PdM. Você sofreu na pele a sensação de lutar sem equipamento e viu o quão fácil poderia ser derrotado. Ela também foi emboscada assim como você e também foi presa fácil, assim como você;
- Parafraseando o Renato, realmente é muito fácil iludir os sentidos de outrem. Dissimular tendência é um bom exemplo disso.
- Era sim para ser um anjo da morte, mas vou colocar um anjo da morte no próximo post e substituir a imagem pela paladina que tenho aqui. Ficará melhor.
Abraços e adièau.

PS.: Amanhã, parte 3.

Aldenor disse...

Acho que para uma aventureira experiente o mínimo que se podia fazer ao contratar alguém para ajudar a cuidar do próprio filho seria tomar todas as cautelas e providências para atestar de que não será enganada por uma simples magia de segundo círculo.
Mas tudo bem!