terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Contos Artonianos #1


Pretensão de Aventureiro

- Então foi assim que eu consegui expulsar os goblins daquela carroça e salvei a donzela em apuros!
Alguns rostos sonolentos, outros aborrecidos, observavam uma cena comum. Arthur Woodcastle III era um jovem que trajava roupas de aventureiro. Armadura, espada na cintura, ombreiras de metal, um colete vermelho e preto com um saiote fechado num cinto ordinário. Ele era um dos muitos aventureiros que contavam bravatas sobre suas histórias na taverna.
Entretanto, Arthur não era um bardo, não tinha o requinte que atendesse as demandas de uma platéia um pouco mais seletiva. Para sua sorte, os homens que ali estavam era trabalhadores, cansados de seus dias de labuta em suas lojas de ofícios pela cidade, ou qualquer outro trabalho que garantia seu sustento. Desejavam apenas embriagar-se para relaxar e fugir um pouco das responsabilidades antes de se depararem com sua realidade e voltar para suas casas cuidar de suas famílias. Eles ouviam as histórias de qualquer borra-botas como Arthur parecia ser e se davam por satisfeitos, ainda que seus semblantes não demonstrassem nenhuma simpatia ou satisfação.
Mesmo não sendo um bardo, Arthur era muito jovem e tinha um bom sorriso no rosto. Tinha cabelos negros espalhados pela cabeça com uma franja que ocupava toda a testa. Seus olhos castanhos claros eram brilhantes e sugeriam entusiasmo. Atraia olhares um pouco mais admirados de algumas raparigas que trabalhavam na taverna, arrancava boas risadas do taverneiro Goerb, um homem gordo e opulento que vivia sujo de gordura em seu avental, pois adorava cozinhar para os fregueses. A Taverna do Pombo Perneta da Praça era famosa por seus cozidos, apesar de alguma má fama que algumas más línguas insistiam em espalhar por aí. Diziam que o bom e velho Goerb era um homem frustrado e obcecado por pombos e que os capturava para seus cozidos, trocando frango por estas criaturinhas mais sujas. Verdade ou não, pombos eram raros naquela praça simples com algumas parcas árvores num jardim pouco florido.
Goerb limpava outro copo com um largo sorriso no rosto enquanto Arthur terminava seu último feito de aventureiro, quando salvava a vida da donzela Mirella do ataque de kobolds sedentos por sangue e dinheiro. Um conto que arrancaria suspiro de raparigas, aplausos de camponeses, sorrisos e admiração de plebeus. Mas estes eram homens que viviam em seu cotidiano árido da vida comum. Mas não para aventureiros, mesmo iniciantes, sabiam que impedir o assalto de simples goblins não era mérito para ninguém. Ninguém que queira respeito, claro.
Qualquer ato de violência enfrentando algo fora dos portões da cidade era considerado bastante heróico, reservado àqueles com habilidades além do comum, destinados a grandes feitos. Assim eram vistos os heróis aventureiros em Valkaria, a cidade-imperial. A maior cidade do mundo civilizado é acostumada a tolerar todo tipo de diferença, como entre os famigerados goblins, sujos e oprimidos em suas favelas e os elfos, anteriormente arrogantes e esnobes que hoje vivem sob a amargura da perda de sua lendária nação de Lenórienn. Apesar disso, os homens comuns acreditavam e aceitavam qualquer história fantástica além dos muros da cidade e viam com grande temor os perigos do mundo.
- Você é um tolo, jovem humano.
A voz era feminina e tão melodiosa que o insulto pareceu um grande elogio. Arthur virou seu rosto rapidamente em direção de seus ouvidos e viu uma bela elfa de cabelos loiros e maravilhosos olhos verdes. Seus cabelos estavam presos num coque simples e ela bebericava alguma coisa. Trajava roupas leves nas cores verde e branco. Tinha uma capa num tom esverdeado mais leve, quase como uma folha recém amadurecida. Em sua expressão havia um misto de implicância e zombaria.
- Como ousa, elfa? Duvida que eu tenha protegido a honra de milady Mirella? Pois ela me deu isto como recompensa. – Arthur retirou de sua algibeira um colar com uma pedra com um amarelo-fosco mau lapidada.
- Você conta estas bravatas como se fossem grandes feitos. Não fez nada mais que sua obrigação em proteger alguém que precisava e ainda aceitou um pagamento. Olhe, é uma pedra sem valor. Como o seu feito, “herói”. Trivial. – Sorrindo de esgueira, olhou para baixo e logo se percebia que estava com um livro muito gordo em páginas e de capa feita de couro muito grosso.
Arthur olhou a jóia novamente e notou que ela realmente era feia. Parecia um objeto realmente sem valor. Guardou em sua algibeira e sentou-se na cadeira de pernas altas que ficava em frente ao balcão do taverneiro Goerb. Este, com pena do rapaz visivelmente desmoralizado por aquela noite, resolveu dar conselhos de pai. Disse para não desistir e para se alistar no Protetorado do Reino.
Há quem diga que os maiores heróis de Arton são do Protetorado do Reino. Uma força de elite formada não apenas de soldados, mas principalmente por heróis. São aventureiros contratados e financiados pela Coroa de Deheon, com acesso aos recursos do rei-imperador e da Academia Arcana, e geralmente estão capacitados para qualquer tipo de missão, aventuras e explorações em geral.
Muitos jovens aventureiros tentam essa carreira, com o intuito de adquirirem missões arriscadas, mas com a segurança de uma base de operações na maior cidade do Reinado. É de extrema honra para aqueles que desejam uma vida errante na estrada, juntarem-se ao Protetorado. Os testes para a admissão são simples, para quem é corajoso e habilidoso com técnicas acima da mediocridade da vida mundana cotidiana e que possua um caráter verdadeiramente honrado. Porém, uma vez que se saia por livre e espontânea vontade (que não seja através de morte), nunca mais poderá retornar. Existe, inclusive, um velho ditado no meio dos aventureiros: “Entrar para o Protetorado é fácil. Sair é mais fácil ainda. O difícil é permanecer”. O Protetorado do Reino é conhecido por tratar das missões mais arriscadas e com a maior taxa de mortalidade que se tem notícia.
Arthur resmungou qualquer coisa depreciando o Protetorado, mas no fundo sabia que era o objetivo principal. Mas não queria entrar como soldado raso, mas como um herói importante. Para isso precisava se aventurar, ter seus feitos cantados por bardos. Viu que não tivera muito sucesso em sua empreitada pela estrada aos arredores de Valkaria. Nesse dia ele tinha decidido sair da monotonia, julgando estar apto para lutar com sua espada bastarda, um pouco mais cumprida que a tradicional espada longa, mas menor que uma espada de lâmina larga, de duas mãos. Com o treinamento devido, ele sabia manejar a espada bastarda com uma só mão sem problemas. Saindo de Valkaria com sua armadura, fingiu para todos que o olhavam de esgueira que era um aventureiro em missão. Andou pelos arredores da cidade, cumprimentando mercadores que chegavam e saiam com suas carroças abarrotadas de produtos de todos os tipos e devidamente escoltados por mercenários ou aventureiros.
Até que encontrou a donzela Mirella em sua carruagem. Moça mimada, havia brigado com seu pai porque seu pretendente possuía um nariz avantajado demais. Visando fugir de Valkaria, pegou uma carruagem da família e alguns servos e partiu em disparada. Arthur viu a carruagem e viu um grupo de goblins se cutucando agitadamente enquanto viam a donzela passar. Seguiram cuidadosamente pelas ruas até saírem de Valkaria por um dos portões. Aí houve o assalto. Arthur surgiu com uma entrada heróica chamando seus adversários de vilões e brandiu sua espada com veemência. Suava pela emoção e expectativa de combate e tudo que desejava era golpear e ver sangue. Não que quisesse matar, mas faria se fosse necessário.
Porém, ele se decepcionou. Covardes, os goblins, mesmo em maior número, desistiram de lutar e apenas fugiram. A donzela Mirella demorou em aparecer na janela da carruagem, então Arthur brandiu sua espada ao vento, fazendo barulho de movimentos e de golpes. Assim que ela apareceu, pode ouvir o berro de “nunca mais molestem esta dama!” e sentiu-se feliz. Viu que o jovem era um rapaz bonito, mas seu traje não lhe passava a idéia de era um par apropriado. Resolveu agradece-lo com um beijo e um colar com uma pedra amarela-fosco mal lapidado. Era sua primeira aventura, primeira batalha e primeiro pagamento. Sentia-se aventureiro o suficiente para gabar-se na taverna mais próxima.
Até que essa elfa apareceu. Ele pôs-se a olhá-la novamente e reparou o quão bela era. Sentiu-se fisgado, mas irritado por ter sido menosprezado. Odiava o ar de superioridade que ela tinha ao ler o livro e ao beber. Viu que ela tinha uma mochila presa à cadeira de madeira em que sentava e, sobre a mesa, havia uma bolsa de conteúdo incerto. Ele viu que ela poderia ser uma aventureira. Pensou em se aproximar, controlando o estômago que revirava em sinal de timidez. Quando virou seu rosto, viu que ela estava sentada do seu lado, em frente ao balcão.
Arthur se assustou além do que queria demonstrar e arregalou os olhos. Denunciava que pensava em falar com a elfa, e ela pareceu se divertir com isso sorrindo amigavelmente.
- Olá, humano. Me chamo Ferannia Holimion.
- Oi. Sou Arthur Woodcastle Terceiro.
- Um nome cumprido para quem vive tão pouco. Você é o terceiro Arthur da sua família? Isso significa que seu pai e seu avô são guerreiros como você?
- Não. Meu avô era um mago de Wynlla. Meu pai era um cavaleiro de Namalkah, ranger. Eu sou só guerreiro mesmo. O nome não quer dizer que serei igual a eles.
- Curioso, seus ascendentes estão vivos?
- Acho que sim, mas só meu pai está próximo, mora em Ridembarr com minha mãe. Meu avô está desaparecido há muito tempo. E você? O que quer de mim?
- Não me leve a mal. Ainda penso que espantar goblins assaltantes em Valkaria não é grande coisa. Mas seu entusiasmo por aventura me intrigou. Por que quer ser aventureiro, jovem?
- Pare de me chamar de jovem. Eu tenho dezoito anos, não pareço ser tão mais novo que você.
- Eu sou uma elfa, esqueceu? Tenho quase um século de vida a mais que você. Fale-me, por que quer ser aventureiro?
Incerto, Arthur pediu uma caneca de cerveja e um pedaço de pão. Viu que ela sorria sempre ao falar e demonstrava o claro interesse que ele via nas raparigas de taverna. Mas ela era uma elfa, um povo emotivo e conhecido por sua arrogância. Motivos que os levaram a ruína. Ela definitivamente não era uma rapariga de taverna.
- Meu avô era. Meu pai era. Pareceu ser natural. E eu tenho vocação. Não sou inteligente pra fazer magia, não tenho empatia com animais e nem sou capaz de abrir fechaduras. Sou forte, sei lutar bem. E gosto bastante, inclusive. Mas sou novato nisso, nunca lutei a sério. Cá entre nós: os goblins fugiram de mim antes que eu acertasse os desgraçados. Mas quero ser um herói e conhecer o mundo. Mas por que tantas perguntas?
Bebeu um gole da cerveja, tentando sair um pouco do foco da conversa e tentando fazer com que o diálogo não se perdesse. Sentiu que revelou demais o que pensava, sem mentir. Mas também não viu nenhum mal nisso, achando que, por algum motivo, deveria falar a verdade naquele momento.
- Porque achei você intrigante, ora essa. Se aventurar por esses motivos me parece bem humano mesmo, inconseqüente, rebelde. Como o terceiro da sua família, não deveria repetir os erros de seus antecessores. Mas enfim, não me interessa isso. Quero saber agora por que não se alistou no Protetorado do Reino.
- Por que não estou pronto. Quero me alistar quando for um herói já conhecido.
Ele bebeu mais um gole de sua cerveja e mordeu o pão que acabara de receber. Ela ficou menos risonha e mais séria. Mas parecia satisfeita com o que ouviu.
- Tenho uma proposta a lhe fazer, Arthur Woodcastle Terceiro.
E assim tudo começou.