Aztag
17, Luvitas, 1410 CE.
A lâmina bastante afiada da
espada longa do hobgoblin estava umedecida de sangue. Na verdade, encharcada.
Aquele homem, ou melhor, aquela criatura, era mais um capitão hobgoblin, líder de
tropas, experiente. Um guerreiro formidável. E eu o enfrentei diretamente,
sozinho, causando-lhe grande ferimento com um único golpe com minha katana.
Cheguei a sentir o gosto da vitória por alguns segundos ao sentir a minha
lâmina perfeita abrindo uma enorme fenda na armadura de metal. Senti o cheiro
de seu sangue.
E foi por isso que a espada
dele mergulhou no meu sangue, após cortar minha carne e meus ossos. A dor
dilacerante foi a maior e mais incomparável de toda minha vida. Justamente,
porque foi a dor da minha morte.
Tudo começou um pouco antes
disso, numa decisão bastante equivocada de nosso líder Drake. Não o culpo
totalmente. Ele é um paladino de Thyatis, um herói por definição, destemido e
ainda por cima imortal. Mas depois chego a isto. Voltando mais um pouco,
durante as viagens de navio que nos levaram de Vila Questor, uma cidade de
Tyrondir, até Lamnor, o continente perdido, tomado pela Aliança Negra.
Estávamos todos muito curiosos
quanto à missão que nos seria dada por Morion assim que chegássemos a Lamnor. E
como isso nos serviria para nossa missão maior, a caça aos rubis da virtude.
Durante a viagem em um navio bastante cuidado, bem tripulado (tinha até uma
elfa clériga de Tanna-Toh bastante solícita), tivemos alguns percalços
incômodos. Claro que nossa vida foi arriscada. Mas isso fazia parte do pacote.
Enquanto saíamos vivos, eu apenas sorria alegremente quando Castiel cantava uma
música curadora e lamentava de forma humorada como Nathaniel não estava muito
focado em seus milagres de cura.
Enfrentamos elfos-do-mar
saqueadores, que na verdade, não foram lá um grande desafio. Castiel nos disse
que eles não podiam fabricar itens de metal, afinal, não tinham forjas no fundo
do mar. Mas amavam mais que tudo qualquer artefato metálico. E por isso saqueavam
embarcações. Estes elfos-do-mar foram tolos e tiveram o azar de atacar um navio
com pelo menos dez aventureiros.
No dia seguinte, tivemos um
confronto mais difícil, contra uma serpente marinha aleatória que brotou do
mar. Na verdade era um elasmossauro, um tipo de monstro muito antigo que viveu
a Era de Megalokk, milênios atrás. Conforme Elinia nos disse. O monstro parecia
faminto e atacou nossa embarcação. Quando estava distante, era impossível fazer
algo. Somente Patrick e seus mísseis mágicos podiam fazer alguma coisa. Harel
também fazia algo com seu belíssimo arco de qualidade superior. Mas foi quando
o orc Gulsh agarrou o bicho e o outro para perto do navio que pudemos fazer
algo. Eu, Victor, Blasco e Drake acabamos de matá-lo com nossas armas. Eu me
lembro de fazer alguma piada sobre comer peixe e que Victor pudesse pescar algo
assim. Divertíamo-nos, éramos felizes com aquela aventura.
A chegada a Lamnor foi rápida e
marcada por muita ansiedade. Descemos em um pequeno barco (que fez duas
viagens, graças ao nosso grande contingente de pessoas) e aportamos na praia.
Fomos recebidos por um Morion em pessoa.
A missão era simples, consistia
em avançar sobre uma região, aparentemente uma caverna oculta em uma cachoeira,
que estava ocupada por uma raça desconhecida. Mas havia um problema maior que
tinha que ser solucionado primeiro. Aquela área imensa, não somente a praia ou
o acampamento próximo, mas vários quilômetros estavam amaldiçoados por alguma
área de antimagia. Sim, nenhuma magia, seja arcana, seja provinda dos deuses
funcionava. Sequer itens mágicos funcionavam. Foi nessa situação (eu acho) que
percebi a arma mágica que Drake carregava. Seu martelo de guerra era encantado,
um presente de família, afinal, ele era de Zakharov, o Reino das Armas.
Para eliminar o problema da
magia, tínhamos que vasculhar um acampamento militar de hobgoblins que ficava
no lado oposto à caverna oculta pela cachoeira. Aparentemente lá poderíamos
descobrir o que estava causando este estranho fenômeno. Eu havia lido sobre
áreas de magia morta. Havia lido também sobre o efeito da Tormenta sobre a
magia artoniana, a perturbava, a enfraquecia. Mas não havia, felizmente,
indícios de Tormenta naquela região específica de Lamnor.
Decidimos viajar até o
acampamento hobgoblin. Foi uma decisão acertada. Afinal, um acampamento militar
era mais franco, menos surpresas, aberto e conhecido. Enfrentar uma caverna
desconhecida com uma raça também desconhecida não parecia sábio sem o recurso
da magia. Então, foi o momento para Harel brilhar no nosso grupo. Até então, o
elfo era meio apagado, salvo algumas flechas espertas aqui outra lá, ele não
fazia muita diferença.
Dessa vez, ele usou sua enorme
capacidade de ser ignorado e passou despercebido por todos para ser um grande
batedor para o grupo. Por muito tempo ficou vigiando e colhendo informações que
considerava útil do acampamento e depois nos contou. Estávamos sobre uma
elevação montanhosa e tínhamos uma pouco da visão daquilo lá. Era um
acampamento militar, como as informações dos batedores do acampamento élfico
havia nos passado. Mas também servia de cidade. Havia mulheres e crianças
hobgoblins. Além de ogros guardas com armaduras e armas metálicas bem
perigosas. E enormes! Porém, eram os escravos humanos que me partiram o
coração. Eu tive que conviver com a escravidão mais à minha vista desde a
criação do infame Império de Tauron, mas sabia que os escravos dos minotauros
eram geralmente bem tratados. Ser escravo de hobgoblin, entretanto, era uma
experiência muito diferente. Eram tão maltratados e usados para os mais
sórdidos divertimentos que não ouso pensar sobre.
Descobrimos através dos olhos
de Harel o nosso alvo primário. Eram três totens, elevados de feitos de madeira
maciça, grossos e roliços. Eram vários desenhos encravados na madeira bruta,
com milhares de signos diversos. O fato é que meus estudos arcanos não eram
suficientes para entender aquilo. E o conhecimento sobre religiões e rituais
não eram suficientes para Nathaniel. Tomei aquilo como algo bastante exótico se
nem mesmo nosso clérigo douto nas artes arcanas e divinas não sabia.
Mais à frente percebi que
Nathaniel na verdade não era um poço de conhecimento e sabedoria infinita como
eu julgava.
Drake, então, decidiu que
invadiríamos o acampamento e andaríamos em um bloco único de lutadores. Harel
usaria flechas incendiárias para por fogo em algumas cabanas militares (onde
não haveria mulheres, crianças hobgoblins ou escravos humanos) e isso chamaria
uma grande atenção, uma comoção grande, atraindo pelo menos um grande contingente
de hobgoblins para apagar o fogo. Nesse sentido, invadiríamos pelo elevado
montanhoso e avançaríamos até os três totens para tentar destruí-los.
Acreditávamos que eles eram a causa da perturbação arcana. Nathaniel teorizou
que sim. Eu vi as máquinas de guerra hobgoblins. Feitas de madeira e ferro, eram
catapultas mais modernas e tinha uma que era particularmente grande. Fico
pensando o tipo de castelo que ela poderia destruir.
Bom, caro leitor, este foi o
erro primordial dessa pequena missão. E a partir daí foi só ladeira abaixo
naquele dia.
Patrick, Nathaniel e a loba
Lyca ficaram para trás, rondaram o acampamento para ficarem perto da entrada.
Os hobgoblins haviam feito uma enorme paliçada que cercava todo o lugar, mas
ainda assim, havia uma entrada próximo ao elevado montanhoso que encontramos.
Ali escondidos, eles estavam a salvo e não nos atrapalhariam, pois sem suas
magias era óbvio que sua utilidade beirava a nada.
Então, vimos a primeira flecha
de fogo. Depois várias. Algumas cabanas começaram a pegar fogo. Tão logo uma
máquina com um reservatório de água foi acionado e carregado por escravos
humanos, nós agimos.
Os combatentes, os homens
brutos (eu incluso!) avançaram rapidamente. Victor e eu avançamos nos
destacando do grupo. Nesse momento é normal que o grupo não avance como um
único bloco, pois cada um tem uma velocidade de reação diferente. Assim que os
hobgoblins nos notaram, avançaram sobre nós. Vi os ogros guardas se
movimentando também. Eles quem eu mais temia no momento. Eram monstros maiores
que Gulsh e possuíam armas do mesmo tamanho.
Mas assim que eu e Victor
avançamos, Blasco chegou às nossas costas. E o grupo se dividiu. O combate
chegou a nós três com vários hobgoblins. Tivemos que lhes dar batalha
imediatamente. Com a katana na mão matava um a cada golpe. Blasco e Victor não
tinham a mesma sorte, de modo que me movimentei ao redor dos inimigos,
desviando, aparando seus golpes para auxiliá-los.
Gulsh, Drake e Elinia passaram
atrás de nós e avançaram, chegando ao primeiro totem, imenso e horrendo. Antes
disso, porém, Gulsh destruiu a roda daquela máquina cheia dágua que os escravos
carregavam para apagar o incêndio. Isso atrasou bastante o apagar do fogo, mas
também acabou sendo um momento inútil. Já tendo ciência de nossa presença, as
forças militares não se preocupariam com o fogo, mas com o combate. Gulsh
acabou dando mais trabalho aos escravos do que aos hobgoblins que nos matavam.
Lá havia mais hobgoblins guerreiros encouraçados
com cotas de malha, escudos e armados com espadas longas. E um ogro. A luta
entre Gulsh e o ogro foi longa, duas criaturas enormes se digladiando. Mas não
prestei muita atenção, pois eu estava ocupado.
Logo, um ogro apareceu na nossa
linha de combate e fiquei bastante preocupado quando Blasco decidiu enfrentá-lo
sozinho. O pequenino entrou por entre as pernas do ogro e ficou ali, desviando
dos golpes dos hobgoblins que tentavam acertá-lo e até mesmo do ogro. Vi com os
meus próprios olhos os soldados atingindo o ogro sem querer. Por Valkaria, vi
até mesmo o ogro acertando a si mesmo!
Notei que os soldados eram
muito fracos, adversários que nunca me atingiam e só serviam para me atrasar. Mas
eu acreditava que deveria ficar por ali, ao lado de Blasco e Victor para evitar
que aquele amontoado de hobgoblins e até mesmo o ogro fosse atrapalhar a
batalha de Elinia, Drake e Gulsh.
Até aquele momento, não tinha
prestado atenção em Castiel. Mas ele estava por ali. Foi quando dei por mim.
Ele estava usando sua magnífica música de sua ocarina para impedir os avanços
de um ogro. A música fazia o monstro expressar uma cara de bobo, como se
estivesse apreciando a música. Só que era bizarro ver aquilo no meio de um
combate. Fascinado, ele não era uma ameaça. Porém, vendo que Drake, Elinia e
Gulsh não conseguiam derrotar seus inimigos e nem chegarem perto do totem de
forma eficaz, ele desistiu do ogro e foi ele mesmo para lá.
Mais um inimigo formidável em
campo e eu tive que enfrentá-lo. Foi assim que sofri meu primeiro ferimento.
Sangrei bastante, mas aguentei o tranco. Apenas feri o ogro e desejei que outro
alguém do nosso grupo fosse capaz de derrotá-lo. Mas ninguém foi.
Vi Castiel conversando com um
escravo qualquer no turbilhão do combate. Parece que ele ouviu alguma
informação importante, pois se dirigiu rapidamente ao totem. Então, caro
leitor, atento à conta, dois ogros começaram ameaçar Elinia, Drake e Gulsh.
Blasco brincava um jogo muito perigoso debaixo de outro ogro, enquanto eu e
Victor perdíamos nosso tempo atrasando os hobgoblins.
Foi quando ele veio.
O capitão hobogoblin apareceu
com sua armadura de metal cheia de arranhões. Era um homem experiente em
batalhas, com um elmo macabro, escudo e espada em mãos. Senti que era o
adversário mais poderoso naquele momento. Senti que deveria derrotá-lo e evitar
mais um adversário formidável. Bem ou mal, estávamos igualando as forças
contras os ogros e os hobgoblins. Aquele capitão, entretanto, desequilibraria
tudo. Avancei sobre ele e gritei no meu golpe.
Mestre Satoshi Yamada me disse
uma vez, anos atrás, que o grito antecedente ao golpe é libertador, ajuda a
liberar toda sua força. E deu certo. Cortei sua armadura e senti sua carne
rasgar. Um golpe limpo e bem dado. Seu sangue jorrou pelo chão e encharcou sua
armadura. Eu dei um sorriso de satisfação. Victor começou a se dirigir até mim.
Entretanto, eu estava ferido.
Castiel havia passado por mim e
tinha decido que era mais importante chegar ao totem do que assoviar uma canção
de cura. Tudo bem, de fato era mais importante. Mas se ele tivesse assoviado,
eu teria aguentado o que estava por vir.
Um golpe certeiro me derrubou.
Sangrei lentamente no chão. A dor excruciante só me confundia os pensamentos. A
luta pela vida foi árdua e bastante frustrante. Pois eu perdi. Vi Victor chegar
gritando, dando seus poderosos socos. Vi minha katana largada ao chão sobre uma
poça de sangue. Era meu sangue. Eu havia sangrado muito. Senti meus dedos e
depois meus braços e pernas inteiras tremerem e perderem a sensibilidade. A dor
agora havia alcançado um ápice. E então, parou. Fiquei observado, curioso, o
que acontecia comigo. Já havia aceitado que iria morrer, então, queria guardar
a lembrança de como era.
Tudo ficando escuro, o
raciocínio ficando cada vez mais difícil. Não conseguia mais pensar, nem falar
nada. O cheiro de sangue começou a sumir também. Em breve, nenhum dos meus
sentidos me guiava no mundo. Eu também não estava mais nele.
Foi assim que eu morri. A
primeira vez a gente nunca esquece.
Soube mais tarde que Victor
pegou meu corpo para fugir. E que Harel foi mais eficaz de todos, andando
furtivamente e desativando os totens. Acabou que não era preciso destruí-los,
apenas desativá-los, tirando e destruindo um objeto que estava dentro daquelas
coisas horrendas. Castiel soube disso do escravo com quem conversou por alguns
segundos. E foi isso que ele foi ver no totem. Assim que os três totens foram
desativados, a magia voltou. Elinia conjurou suas gavinhas para imobilizar os
inimigos. Patrick ficou invisível e salvou minha katana das mãos dos
hobgoblins. O grupo se retirou rapidamente.
Soube que Blasco também fora
morto, logo depois de mim. O ogro, enfim, cansou de brincar e o acertou com
tamanha força que o partiu ao meio. Ainda bem que não vi essa cena grotesca.
Este foi o saldo daquela investida insana. Drake era um lefou, por isso eu
acreditava que possuía um ponto de loucura, mácula da Tormenta, em sua mente.
Drake também era imortal, por isso, talvez, sua facilidade em desconsiderar a
morte em seus planos. O fato é que dois morreram, pois não deveríamos ter
invadido o acampamento para lutar. Era absolutamente insano achar que
poderíamos vencer os hobgoblins e seus ogros. O mais correto o tempo todo foi
Harel. Escondido de todos, apenas se aproximava dos totens sem que ninguém o
visse e fazia o seu trabalho.
Confesso que guardei algum
rancor por algum tempo de Drake. E isso se acumulou até o dia do meu aniversário.
Hoje eu vejo que o paladino não tinha culpa e tinha muita boa fé em seu
coração. Faltou apenas experiência mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário