sábado, 25 de janeiro de 2014

Diário de Aldred C. Maedoc III - Parte 11

Aztag 17, Luvitas, 1410 CE.

A lâmina bastante afiada da espada longa do hobgoblin estava umedecida de sangue. Na verdade, encharcada. Aquele homem, ou melhor, aquela criatura, era mais um capitão hobgoblin, líder de tropas, experiente. Um guerreiro formidável. E eu o enfrentei diretamente, sozinho, causando-lhe grande ferimento com um único golpe com minha katana. Cheguei a sentir o gosto da vitória por alguns segundos ao sentir a minha lâmina perfeita abrindo uma enorme fenda na armadura de metal. Senti o cheiro de seu sangue.
E foi por isso que a espada dele mergulhou no meu sangue, após cortar minha carne e meus ossos. A dor dilacerante foi a maior e mais incomparável de toda minha vida. Justamente, porque foi a dor da minha morte.

Tudo começou um pouco antes disso, numa decisão bastante equivocada de nosso líder Drake. Não o culpo totalmente. Ele é um paladino de Thyatis, um herói por definição, destemido e ainda por cima imortal. Mas depois chego a isto. Voltando mais um pouco, durante as viagens de navio que nos levaram de Vila Questor, uma cidade de Tyrondir, até Lamnor, o continente perdido, tomado pela Aliança Negra.
Estávamos todos muito curiosos quanto à missão que nos seria dada por Morion assim que chegássemos a Lamnor. E como isso nos serviria para nossa missão maior, a caça aos rubis da virtude. Durante a viagem em um navio bastante cuidado, bem tripulado (tinha até uma elfa clériga de Tanna-Toh bastante solícita), tivemos alguns percalços incômodos. Claro que nossa vida foi arriscada. Mas isso fazia parte do pacote. Enquanto saíamos vivos, eu apenas sorria alegremente quando Castiel cantava uma música curadora e lamentava de forma humorada como Nathaniel não estava muito focado em seus milagres de cura.
Enfrentamos elfos-do-mar saqueadores, que na verdade, não foram lá um grande desafio. Castiel nos disse que eles não podiam fabricar itens de metal, afinal, não tinham forjas no fundo do mar. Mas amavam mais que tudo qualquer artefato metálico. E por isso saqueavam embarcações. Estes elfos-do-mar foram tolos e tiveram o azar de atacar um navio com pelo menos dez aventureiros.
No dia seguinte, tivemos um confronto mais difícil, contra uma serpente marinha aleatória que brotou do mar. Na verdade era um elasmossauro, um tipo de monstro muito antigo que viveu a Era de Megalokk, milênios atrás. Conforme Elinia nos disse. O monstro parecia faminto e atacou nossa embarcação. Quando estava distante, era impossível fazer algo. Somente Patrick e seus mísseis mágicos podiam fazer alguma coisa. Harel também fazia algo com seu belíssimo arco de qualidade superior. Mas foi quando o orc Gulsh agarrou o bicho e o outro para perto do navio que pudemos fazer algo. Eu, Victor, Blasco e Drake acabamos de matá-lo com nossas armas. Eu me lembro de fazer alguma piada sobre comer peixe e que Victor pudesse pescar algo assim. Divertíamo-nos, éramos felizes com aquela aventura.
A chegada a Lamnor foi rápida e marcada por muita ansiedade. Descemos em um pequeno barco (que fez duas viagens, graças ao nosso grande contingente de pessoas) e aportamos na praia. Fomos recebidos por um Morion em pessoa.
A missão era simples, consistia em avançar sobre uma região, aparentemente uma caverna oculta em uma cachoeira, que estava ocupada por uma raça desconhecida. Mas havia um problema maior que tinha que ser solucionado primeiro. Aquela área imensa, não somente a praia ou o acampamento próximo, mas vários quilômetros estavam amaldiçoados por alguma área de antimagia. Sim, nenhuma magia, seja arcana, seja provinda dos deuses funcionava. Sequer itens mágicos funcionavam. Foi nessa situação (eu acho) que percebi a arma mágica que Drake carregava. Seu martelo de guerra era encantado, um presente de família, afinal, ele era de Zakharov, o Reino das Armas.
Para eliminar o problema da magia, tínhamos que vasculhar um acampamento militar de hobgoblins que ficava no lado oposto à caverna oculta pela cachoeira. Aparentemente lá poderíamos descobrir o que estava causando este estranho fenômeno. Eu havia lido sobre áreas de magia morta. Havia lido também sobre o efeito da Tormenta sobre a magia artoniana, a perturbava, a enfraquecia. Mas não havia, felizmente, indícios de Tormenta naquela região específica de Lamnor.
Decidimos viajar até o acampamento hobgoblin. Foi uma decisão acertada. Afinal, um acampamento militar era mais franco, menos surpresas, aberto e conhecido. Enfrentar uma caverna desconhecida com uma raça também desconhecida não parecia sábio sem o recurso da magia. Então, foi o momento para Harel brilhar no nosso grupo. Até então, o elfo era meio apagado, salvo algumas flechas espertas aqui outra lá, ele não fazia muita diferença.
Dessa vez, ele usou sua enorme capacidade de ser ignorado e passou despercebido por todos para ser um grande batedor para o grupo. Por muito tempo ficou vigiando e colhendo informações que considerava útil do acampamento e depois nos contou. Estávamos sobre uma elevação montanhosa e tínhamos uma pouco da visão daquilo lá. Era um acampamento militar, como as informações dos batedores do acampamento élfico havia nos passado. Mas também servia de cidade. Havia mulheres e crianças hobgoblins. Além de ogros guardas com armaduras e armas metálicas bem perigosas. E enormes! Porém, eram os escravos humanos que me partiram o coração. Eu tive que conviver com a escravidão mais à minha vista desde a criação do infame Império de Tauron, mas sabia que os escravos dos minotauros eram geralmente bem tratados. Ser escravo de hobgoblin, entretanto, era uma experiência muito diferente. Eram tão maltratados e usados para os mais sórdidos divertimentos que não ouso pensar sobre.
Descobrimos através dos olhos de Harel o nosso alvo primário. Eram três totens, elevados de feitos de madeira maciça, grossos e roliços. Eram vários desenhos encravados na madeira bruta, com milhares de signos diversos. O fato é que meus estudos arcanos não eram suficientes para entender aquilo. E o conhecimento sobre religiões e rituais não eram suficientes para Nathaniel. Tomei aquilo como algo bastante exótico se nem mesmo nosso clérigo douto nas artes arcanas e divinas não sabia.
Mais à frente percebi que Nathaniel na verdade não era um poço de conhecimento e sabedoria infinita como eu julgava.
Drake, então, decidiu que invadiríamos o acampamento e andaríamos em um bloco único de lutadores. Harel usaria flechas incendiárias para por fogo em algumas cabanas militares (onde não haveria mulheres, crianças hobgoblins ou escravos humanos) e isso chamaria uma grande atenção, uma comoção grande, atraindo pelo menos um grande contingente de hobgoblins para apagar o fogo. Nesse sentido, invadiríamos pelo elevado montanhoso e avançaríamos até os três totens para tentar destruí-los. Acreditávamos que eles eram a causa da perturbação arcana. Nathaniel teorizou que sim. Eu vi as máquinas de guerra hobgoblins. Feitas de madeira e ferro, eram catapultas mais modernas e tinha uma que era particularmente grande. Fico pensando o tipo de castelo que ela poderia destruir.
Bom, caro leitor, este foi o erro primordial dessa pequena missão. E a partir daí foi só ladeira abaixo naquele dia.
Patrick, Nathaniel e a loba Lyca ficaram para trás, rondaram o acampamento para ficarem perto da entrada. Os hobgoblins haviam feito uma enorme paliçada que cercava todo o lugar, mas ainda assim, havia uma entrada próximo ao elevado montanhoso que encontramos. Ali escondidos, eles estavam a salvo e não nos atrapalhariam, pois sem suas magias era óbvio que sua utilidade beirava a nada.
Então, vimos a primeira flecha de fogo. Depois várias. Algumas cabanas começaram a pegar fogo. Tão logo uma máquina com um reservatório de água foi acionado e carregado por escravos humanos, nós agimos.
Os combatentes, os homens brutos (eu incluso!) avançaram rapidamente. Victor e eu avançamos nos destacando do grupo. Nesse momento é normal que o grupo não avance como um único bloco, pois cada um tem uma velocidade de reação diferente. Assim que os hobgoblins nos notaram, avançaram sobre nós. Vi os ogros guardas se movimentando também. Eles quem eu mais temia no momento. Eram monstros maiores que Gulsh e possuíam armas do mesmo tamanho.
Mas assim que eu e Victor avançamos, Blasco chegou às nossas costas. E o grupo se dividiu. O combate chegou a nós três com vários hobgoblins. Tivemos que lhes dar batalha imediatamente. Com a katana na mão matava um a cada golpe. Blasco e Victor não tinham a mesma sorte, de modo que me movimentei ao redor dos inimigos, desviando, aparando seus golpes para auxiliá-los.
Gulsh, Drake e Elinia passaram atrás de nós e avançaram, chegando ao primeiro totem, imenso e horrendo. Antes disso, porém, Gulsh destruiu a roda daquela máquina cheia dágua que os escravos carregavam para apagar o incêndio. Isso atrasou bastante o apagar do fogo, mas também acabou sendo um momento inútil. Já tendo ciência de nossa presença, as forças militares não se preocupariam com o fogo, mas com o combate. Gulsh acabou dando mais trabalho aos escravos do que aos hobgoblins que nos matavam.
 Lá havia mais hobgoblins guerreiros encouraçados com cotas de malha, escudos e armados com espadas longas. E um ogro. A luta entre Gulsh e o ogro foi longa, duas criaturas enormes se digladiando. Mas não prestei muita atenção, pois eu estava ocupado.
Logo, um ogro apareceu na nossa linha de combate e fiquei bastante preocupado quando Blasco decidiu enfrentá-lo sozinho. O pequenino entrou por entre as pernas do ogro e ficou ali, desviando dos golpes dos hobgoblins que tentavam acertá-lo e até mesmo do ogro. Vi com os meus próprios olhos os soldados atingindo o ogro sem querer. Por Valkaria, vi até mesmo o ogro acertando a si mesmo!
Notei que os soldados eram muito fracos, adversários que nunca me atingiam e só serviam para me atrasar. Mas eu acreditava que deveria ficar por ali, ao lado de Blasco e Victor para evitar que aquele amontoado de hobgoblins e até mesmo o ogro fosse atrapalhar a batalha de Elinia, Drake e Gulsh.
Até aquele momento, não tinha prestado atenção em Castiel. Mas ele estava por ali. Foi quando dei por mim. Ele estava usando sua magnífica música de sua ocarina para impedir os avanços de um ogro. A música fazia o monstro expressar uma cara de bobo, como se estivesse apreciando a música. Só que era bizarro ver aquilo no meio de um combate. Fascinado, ele não era uma ameaça. Porém, vendo que Drake, Elinia e Gulsh não conseguiam derrotar seus inimigos e nem chegarem perto do totem de forma eficaz, ele desistiu do ogro e foi ele mesmo para lá.
Mais um inimigo formidável em campo e eu tive que enfrentá-lo. Foi assim que sofri meu primeiro ferimento. Sangrei bastante, mas aguentei o tranco. Apenas feri o ogro e desejei que outro alguém do nosso grupo fosse capaz de derrotá-lo. Mas ninguém foi.
Vi Castiel conversando com um escravo qualquer no turbilhão do combate. Parece que ele ouviu alguma informação importante, pois se dirigiu rapidamente ao totem. Então, caro leitor, atento à conta, dois ogros começaram ameaçar Elinia, Drake e Gulsh. Blasco brincava um jogo muito perigoso debaixo de outro ogro, enquanto eu e Victor perdíamos nosso tempo atrasando os hobgoblins.
Foi quando ele veio.
O capitão hobogoblin apareceu com sua armadura de metal cheia de arranhões. Era um homem experiente em batalhas, com um elmo macabro, escudo e espada em mãos. Senti que era o adversário mais poderoso naquele momento. Senti que deveria derrotá-lo e evitar mais um adversário formidável. Bem ou mal, estávamos igualando as forças contras os ogros e os hobgoblins. Aquele capitão, entretanto, desequilibraria tudo. Avancei sobre ele e gritei no meu golpe.
Mestre Satoshi Yamada me disse uma vez, anos atrás, que o grito antecedente ao golpe é libertador, ajuda a liberar toda sua força. E deu certo. Cortei sua armadura e senti sua carne rasgar. Um golpe limpo e bem dado. Seu sangue jorrou pelo chão e encharcou sua armadura. Eu dei um sorriso de satisfação. Victor começou a se dirigir até mim.
Entretanto, eu estava ferido.
Castiel havia passado por mim e tinha decido que era mais importante chegar ao totem do que assoviar uma canção de cura. Tudo bem, de fato era mais importante. Mas se ele tivesse assoviado, eu teria aguentado o que estava por vir.
Um golpe certeiro me derrubou. Sangrei lentamente no chão. A dor excruciante só me confundia os pensamentos. A luta pela vida foi árdua e bastante frustrante. Pois eu perdi. Vi Victor chegar gritando, dando seus poderosos socos. Vi minha katana largada ao chão sobre uma poça de sangue. Era meu sangue. Eu havia sangrado muito. Senti meus dedos e depois meus braços e pernas inteiras tremerem e perderem a sensibilidade. A dor agora havia alcançado um ápice. E então, parou. Fiquei observado, curioso, o que acontecia comigo. Já havia aceitado que iria morrer, então, queria guardar a lembrança de como era.
Tudo ficando escuro, o raciocínio ficando cada vez mais difícil. Não conseguia mais pensar, nem falar nada. O cheiro de sangue começou a sumir também. Em breve, nenhum dos meus sentidos me guiava no mundo. Eu também não estava mais nele.
Foi assim que eu morri. A primeira vez a gente nunca esquece.

Soube mais tarde que Victor pegou meu corpo para fugir. E que Harel foi mais eficaz de todos, andando furtivamente e desativando os totens. Acabou que não era preciso destruí-los, apenas desativá-los, tirando e destruindo um objeto que estava dentro daquelas coisas horrendas. Castiel soube disso do escravo com quem conversou por alguns segundos. E foi isso que ele foi ver no totem. Assim que os três totens foram desativados, a magia voltou. Elinia conjurou suas gavinhas para imobilizar os inimigos. Patrick ficou invisível e salvou minha katana das mãos dos hobgoblins. O grupo se retirou rapidamente.
Soube que Blasco também fora morto, logo depois de mim. O ogro, enfim, cansou de brincar e o acertou com tamanha força que o partiu ao meio. Ainda bem que não vi essa cena grotesca. Este foi o saldo daquela investida insana. Drake era um lefou, por isso eu acreditava que possuía um ponto de loucura, mácula da Tormenta, em sua mente. Drake também era imortal, por isso, talvez, sua facilidade em desconsiderar a morte em seus planos. O fato é que dois morreram, pois não deveríamos ter invadido o acampamento para lutar. Era absolutamente insano achar que poderíamos vencer os hobgoblins e seus ogros. O mais correto o tempo todo foi Harel. Escondido de todos, apenas se aproximava dos totens sem que ninguém o visse e fazia o seu trabalho.

Confesso que guardei algum rancor por algum tempo de Drake. E isso se acumulou até o dia do meu aniversário. Hoje eu vejo que o paladino não tinha culpa e tinha muita boa fé em seu coração. Faltou apenas experiência mesmo.

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