quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Diário de Aldred C. Maedoc III - Parte 3

Kalag 16, Dantal, 1410 CE.
Posso dizer, sem medo de errar, que o dia 16 de Dantal foi o primeiro dos piores dias da minha vida. A madrugada do dia 15 estava indo mal a pior, com a perseguição que sofríamos por parte da milícia da cidade de Thenallaran.
E tudo culpa de Yurden ou Radagast, seja lá qual for seu nome verdadeiro. E de Blasco, seu guarda-costas.
Mais uma vez, peço desculpa ao leitor, pois minha memória desse dia ruim é frágil. Durante os momentos em que meus olhos estavam fechados, muita coisa aconteceu e eu não pude saber no momento. Porém, queria demonstrar ao máximo o que consigo lembrar e comentar ações e atitudes das pessoas à minha volta. E as minhas atitudes também.

A começar, confesso que paguei o preço por ser um aventureiro novato. Não soube me posicionar no campo de batalha, não soube a hora certa de lutar ou de fugir. E isso quase custou minha vida. Lembro-me de minhas pequenas peripécias em Valkaria, quando era mais jovem e mais indolente ainda. Naquela época, sofria menos. Acho que posso considerar aqueles tempos como uma espécie de brincadeira, mesmo que o risco de vida fosse presente. O presente é a “vida real”, o jogo sério, onde eu, infelizmente, não soube lidar e tive que contar muito com a sorte.
Quando chegamos aos portões da cidade, onde terminavam as construções de moradias e comércio, dois guardas estavam nas guaritas, em torres mais ou menos altas, com uns cinco metros. Suas bestas, armas de madeira que atiravam virotes pontiagudos, eram enormes. Poderiam furar uma armadura de metal.
Eu portava minha katana em mãos, e era possivelmente o único a portar uma arma visivelmente. Quando ainda decidíamos o que fazer, eu podia ouvir os sons esbaforidos de Yurden. Ele estava exausto pela fuga. Meu instinto era de entrega-lo naquele momento. Mas eu ainda o considerava “parte do grupo” e por isso, iria tentar protegê-lo.
Eu me aproximei de Patrick, o jovem ruivo, e pedi por uma magia de sono, como a que ele havia conjurado, minutos atrás. Era o melhor a se fazer. Com os guardas dormindo, poderíamos escalar o portão de madeira e ferro, com vários rebites e outros lugares para apoiar as mãos e pernas, e poderíamos fugir para o campo de cultivo da cidade, logo atrás. Uma vez lá, seria mais difícil ainda sermos pegos pela milícia que vinha ao nosso encalço.
Porém, Patrick começou a falar com um dos guardas da torre de vigia. Pediu por favor, para que abrisse os portões para nós passarmos. Eu não pude evitar levar minha palma da mão à testa. O que aquela criança estava fazendo? Será que não havia limites para a inocência ou estupidez humana?
Porém, eu queimei minha língua. O guarda olhou para o outro, da outra torre de vigia e perguntou se não podiam liberar só essa vez, já que o grupo estava cansado e demonstrava não ser nenhuma ameaça. Ora! Eu tinha uma espada em mãos. Havia um lefou conosco (não que eu seja preconceituoso, mas as outras pessoas o são e consideram lefous como páreas), um troglodita, pelo amor de Marah! O que estava acontecendo ali? Não percebi e nem captei nenhuma mágica sendo conjurada. Aquele rapazinho de Pondsmânia tinha algum doce na voz, um truque na manga?
Infelizmente o outro guarda não permitiu. Disse que seria problemático para eles abrirem o portão depois do toque de recolher. Ele desceu de sua torre com uma lamparina e caminhou em nossa direção. Meu coração palpitou. Tive vontade de atacá-lo naquele momento, mas ele estava desarmado (aparentemente) e estava só averiguando. Parecia errado começar um conflito ali, ainda mais depois de ter matado um miliciano há poucos minutos.
O guarda pareceu ignorar minha espada, olhou para os demais com desinteresse e depois nos disse que chamaria o sargento para perguntar sobre a possibilidade de abrir uma exceção para nós. Era tudo o que não queríamos: perder tempo.
Ouvíamos o som de apitos, latidos de cachorros. Os milicianos estavam muito atrás de nós, mas logo chegariam. Não tínhamos tempo para esperar entrar em querela com um sargento, correr o risco de mais guardas das muralhas aparecerem. Eu senti que era o momento de lutar, mas, por algum motivo, eu não o fiz. Esse foi, eu acho, meu primeiro erro.
A noite já estava transformada em madrugada. A lua em arco dominava o céu estrelado da cidade de Sckharshantallas. A noite estava seca com uma brisa suave para aliviar o calor que o chão e as estruturas de pedra emitiam, depois de um longo dia de sol escaldante. Nessa circunstância, meu pensamento era de ir embora pelos portões, escalar aquela muralha e fugir sem olhar pra trás. Mas Blasco fora mais rápido que eu. Começou a escalar. O troglodita Dorks também se moveu e subiu rapidamente. Toda essa movimentação foi muito rápida, o guarda nem bem tinha voltado para a torre de vigia onde estava.
Vendo que Elinia e Lycah (acho que é essa a grafia) haviam se embrenhado para a torre onde o guarda havia acabado de chegar, decidi que iria abrir caminho pela porta da outra torre oposta. Abrir dois caminhos de fuga. Acho que Dorks abriu a porta (que estava trancada) do outro lado para subirmos. Mas não tenho certeza desses fatos.
O guarda que estava amigável com Patrick por algum tipo de bruxaria desconhecida, atirou um projétil em Blasco. Não sei como aquele pequenino continuou de pé. O virote tinha quase o seu tamanho!
A minha tentativa de abrir a porta foi frustrada. Meu ombro direito começou a doer. Mal sabia eu que aquela era apenas a primeira dor que sentiria naquele ombro. Súbito, tudo começou a piorar. Os cachorros dos milicianos em nosso encalço chegaram ao campo de batalha. Ficamos ao alcance de seus enormes dentes. Não entendo muito de raça de cachorro, mas aqueles eram grandes, compridos e de focinho largo, perfeito para abocanhar o máximo de carne possível. Criaturas criadas para rasgar e matar.
O lefou, então, tomou uma atitude que na hora eu vi como heroica e corajosa. Hoje eu já vejo que foi uma tolice. Saltando para frente de todos, ele se tornou o alvo dos cachorros, atraindo boa parte deles para si. Eu vi de relance, pois alguns cachorros se tornaram meus adversários também. Eram muitos, não sei precisar quantos. O lefou foi engolfado e desapareceu no meio daquelas criaturas. Estava provavelmente morto. Um sacrifício insano. A troco de que? Por que se sacrificar por gente desconhecida? Por dinheiro? Certamente que não.
Eu sofri ataques cruéis. Meu braço fora mordido com violência, enquanto eu desviava da boca enorme de outro cão. Aliás, acredito que esta tenha sido meu único bom desempenho na batalha. Não consegui desviar de outra mordida posterior. De qualquer maneira, tentei atacar um cão com minha katana, já pensando o quanto era um desperdício usar uma arma tão boa, tão perfeita num singelo cachorro de miliciano. Este foi meu segundo grande erro, eu acho. Subestimar aqueles cães do inferno!
A partir daí, minhas memórias são confusas.
Minha mãe, uma maga encantadora e especialista em analisar mentes, me disse certa vez que eu tinha uma grande propensão imaginativa. Eu sou um cara criativo e inventivo. Por isso, quando estou desacordado, seja por uma noite de sono, seja por desmaiar por não suportar a dor dos ferimentos, eu tendo a imaginar muitas coisas, ponderar, sonhar.
Quando o segundo cachorro mordeu minha perna, foi impossível não arquear meu corpo. Então, eu sequer vi o terceiro voar na direção do meu pescoço. Senti os dentes penetrando minha carne macia, o sangue quente brotando do meu pescoço, meu rosto começou a empalidecer. De medo de morrer, suponho. E também pela falta de sangue. Ali, minha consciência se esvaiu pela primeira vez no dia 16 de Dantal. A primeira de muitas.
Não sei quanto tempo passou. Mas abri meus olhos e não me lembro de o que sonhei se é que assim o fiz. Livrei-me do cachorro que mordia meu braço e me pus de pé com a katana em mãos. Vi que o lefou estava de pé, ainda que cercado por cães raivosos. Não muito longe, eu comecei a ouvir o passo de botas pesadas, uma marcha a caminho. Provavelmente, suponho, de milicianos. Olhei rapidamente ao meu redor, procurando meus companheiros. Sim, eu os considerava meu “primeiro grupo” de aventureiros. Vi que somente Yurden estava ali. Ele cantava alguma coisa. A minha cabeça ainda girava pelas dores dos ferimentos, mas aparentemente, eu devia estar morto. Alguma coisa, alguém havia me curado. Quem teria sido? Por que Yurden estava cantando? Era algum tipo de loucura?
Olhei para as torres e vi que não havia mais guardas. Blasco estava em uma torre, Dorks, Elinia e Patrick em outra. Aposto que a loba da menina estava lá também. Eles preparavam para pular o muro. Sim, preparavam para se salvar. E eu e o lefou estávamos lá em baixo, em meio a cães raivosos. Eu tentei me mover, mas senti os músculos das minhas pernas pesados, cansados, como se estivesse doente. Súbito, pus a mão no meu pescoço e o senti muito molhado. Segurei o pânico que crescia nas minhas entranhas, o medo de estar morrendo e desmaiar de novo.
Porém, antes de conseguir me mover em direção ao portão, uma vez que as portas das torres de vigia estavam fechadas, dois cachorros agarraram cada um, um de meus braços. Fui ao chão e, o choque da minha cara com a terra batida me fez perder a consciência de novo.
Dessa vez, eu me recordo dos meus sonhos.
Vi Elinia me esnobando, virando o rosto quando eu perguntava algo a ela. Recusando minha ajuda, dizendo-me não confiar em mim. Vi Dorks arrepiando a crista e mostrando os dentes para mim. Patrick, em seguida, mostrava um sorriso de escárnio para mim, ria de mim. Eu estava no chão, num lugar escuro, sem luz. Não conseguia me mover, mas também não sentia mais dores. Pensei que dessa vez estivesse morto. Vi o lefou com olhar de desaprovação para mim. Mas eu sabia que merecia aquele olhar.
- Eu não tive a intenção de matar o miliciano. Entenda isso, por favor. – Choraminguei. O lefou, então, saltou de ceroulas mesmo, sobre um bando de cães que pareciam um borrão preto na minha visão periférica. Depois, só ouvi seus gritos e o som de carne rasgando.
Yurden e Blasco riam descontroladamente de mim. O halfling tirava seu tapa-olho e mostrava um buraco macabro, enquanto escorria sangue de seu nariz e boca. Mas não deixava de sorrir. Yurden gesticulava as mãos e cantava e isso, por algum motivo, me incomodava muito.
Assim, muito angustiado e frustrado, abri os olhos pela primeira vez. Estava quente como o inferno, por isso, suspeitei ser manhã. O chão era duro como pedra, a luminosidade era aquela vermelha característica, não me fazendo esquecer que estava no inferno de Sckharshantallas. Como as dores também voltaram junto da minha consciência, decidi me entregar ao sono de novo. Mas antes disso, vi dois ou três milicianos trocando palavras.
- Foi esse aí que matou o Gerark. Um golpe só, no pescoço.
- Ele vai ter o que merece.
Palavras escuras, tempos escuros. Dormi.
Minha mãe dizia para eu ter cuidado com a estrada. Meu pai dizia para eu ter cuidado com as cidades. Dormir ao relento podia ser perigoso, mas numa cidade inóspita podia ser bem pior. A diferença do mundo selvagem e do mundo civilizado costumava ser bastante clara à minha mente. Na selva, em meio a florestas e à natureza, o desconhecido era o grande inimigo. Um grande animal ou mesmo um monstro poderiam levar você à sua cova. Nas cidades, havia lei, ordem e segurança. Não era lugar de animais perigosos ou monstros cruéis. Na verdade, hoje eu penso que não há muita diferença entre o campo e o urbano. Apenas o inimigo é diferente. E na cidade, há o agravante da tirania. Da opressão do mais forte sobre o mais fraco, do rico sobre o pobre, do nobre sobre o plebeu. Em cidades assim, a milícia é o inimigo perigoso. O regente é o inimigo cruel.
Acordei e sentei, depois de um tempo. Sabia que o dia não tinha virado, pois meus ferimentos estavam intactos, gritando por atenção e cuidados. Ouvi uma voz suave, melodiosa, mas também ansiosa, do meu lado direito. Perguntava se havia mais alguém além dele. Foi isso que me fez perceber estar dentro de uma prisão, um cubículo com grossas grades de ferro fechando a saída. Demorei um pouco para responder, decidindo se eu queria mesmo conversar com alguém.
- Sim. Estou aqui.
- Oh, graças aos deuses. Você está bem?
Senti meu rosto aquecer de raiva. Como poderia estar bem? Decidi não responder.
- Chamo-me Fenris, estou preso aqui injustamente.
Eu tinha raiva e frustração, mas eu sou um cara debochado. Não pude deixar de ser sarcástico. Era uma boa característica da minha personalidade, pois me fazia amenizar os problemas da vida.
- Eu sou Aldred. E não. Eu mereço estar preso.
- É mesmo? O que você fez?
- Matei um miliciano enquanto fugia com meus colegas.
Subitamente me lembrei dos meus colegas aventureiros. Eles todos estavam praticamente sãos e salvos, com exceção do lefou que jamais soube seu nome. Terá morrido? Ele tinha mais cães se satisfazendo de sua carne que eu. Se tiver sobrevivido, está preso em algum lugar aqui na cadeia. Eu acho. Mas decidi não procurar por ele. Minhas dores estavam prejudicando meu raciocínio.
- Já eu, nada fiz mesmo. Eu sou um pobre mago viajante. Mal pisei o pé em Thenallaran e fui hostilizado, preso.
- Mago, é? Eu sou um espadachim. Mas devem ter roubado minha katana, certamente.
- Nossa, você usa uma katana? Que exótico.
Eu sorri um pouco envaidado, ignorando o quão estúpido era esse sentimento. Não havia nada para me envaidecer numa situação daquelas. Sem falar que devem ter vendido minha katana. Um presente do meu pai para me tornar aventureiro. Uma lâmina do mestre Satoshi Yamada. Lamentável.
- Eu sou um espadachim diferente mesmo. Ou era. Acho que minha carreira de aventureiro acabou.
Minhas palavras devem ter sido pesadas, pois Fenris calou-se por um momento. Mas depois voltou a falar.
- Eu sou de Wynlla, nunca tinha visto alguém ser preso por nada.
- Interessante, é o melhor reino para ser mago. Eu sou de Valkaria, Deheon. – Achei interessante ele ser do Reino dos Magos, onde não havia monarcas. O país era governado por um conselho de magos. A maior parte da economia era baseada na produção de apetrechos úteis à conjuração de magias e diziam que alguns lugares até produziam itens mágicos. Lá existem centenas de escola de magia (nenhuma comparada à Academia Arcana de Talude, em Valkaria) e dizem que até um camponês comum tem algum entendimento dos meandres mágicos. É um lugar exótico, eu diria.
- Você pode me ajudar a sair daqui?
Fenris tinha uma voz de quem estava sempre ansioso por alguma coisa, parecia um adolescente. E, pensando melhor, parecia mesmo ser um rapaz jovem. Talvez da idade de Patrick.
- Consegue conjurar alguma magia?
- Se eu tiver meu anel, eu consigo.
- Interessante item de poder. Mas mesmo sem o anel, se não estiver cansado, você deveria ser capaz de conjurar alguma coisa. – Eu era entendido dos assuntos mágicos também, aprendidos com minha mãe. Alguns tipos de magos canalizam suas forças arcanas através de um objeto que pode ser bastante mundano ou requintado. Mas mesmo sem este objeto, era possível conjurar magias, concentrando-se mais.
- Sem meu anel é muito difícil e isso seria muito arriscado.
O garoto não tinha muita confiança. Tudo bem. Eu ia fomentar um pouco de coragem, mas a porta da prisão se abriu e quatro milicianos entraram, juntamente com duas figuras diferentes: um deles possuía orelhas pontiagudas e cabelos levemente vermelhos. Era um elfo ou meio-elfo. Vestia roupas adornadas, ricamente decoradas. Era um nobre, talvez um lorde. O outro era mais velho, na casa dos quarenta invernos, com barba e cabelo longo preso. Trajava uma armadura de placas de metal sobrepostas.
Eles pararam em frente à minha cela. Um miliciano abriu a porta e pude ver melhor o elfo ruivo. Subitamente, como um estalo, me dei conta da pintura de Sckhar, o regente do reino, na forma humanoide. Durante um período da minha vida eu visitava ateliês de pintores em Valkaria. Um deles pintou o retrato de todos os regentes da ocasião. Sckhar era um imponente elfo ruivo com um olho arruinado por três cicatrizes. O elfo que agora estava à minha frente poderia ser nada menos que seu filho, Trodillick. Estava eu, diante de um meio-dragão nascido. Alguém que eu almejava ser um dia.
Eu queria ser o mais amigável possível. Numa situação dessas, não valia a pena bancar o durão, cuspir no chão e coçar o saco. Se eu quisesse viver, teria que bancar o colaborador. Fiz uma leve reverência à Trodillick. O homem que aparentava ter quarenta anos entrou na minha cela. O filho de Sckhar, então, falou:
- Você e seus colegas foram acusados de fazer baderna e arruaça em minha cidade. Como se não bastasse, você matou um miliciano, um homem da lei preocupado em defender a cidade. Se você cooperar, garanto que seu sofrimento será um pouco melhor.
- Sim, senhor. Eu matei um miliciano e me arrependo amargamente disso. – Eu disse apenas para constar. Não faria diferença alguma. Duvido que Trodillick se preocupasse com a vida de subalternos. O homem de quarenta anos, então, falou.
- Quero nomes. Quem são seus colegas? E qual o plano de vocês?
A pergunta me surpreendeu. Plano? Que plano?
- Sou Aldred Castell Maedoc III, de Valkaria, Deheon. Meus colegas são Yurden, ou Radagast, Blasco, Margaret e Brax. Também tinha um camponês ruivo de Pondsmânia que nunca soube seu nome. O lefou, tão pouco, mas acredito que estava trabalhando para Yurden. Eu, Margaret e Brax já tínhamos viajado juntos antes, encontrando Yurden, Blasco, o lefou e o camponês depois. Eles queriam os serviços de um grupo de aventureiros para uma missão. Entretanto, antes que ele pudesse nos contar o que era, Yurden fora levado, assim como Blasco, pelos homens do regente da cidade. Aparentemente, os dois são bandidos disfarçados de contratantes e causaram problemas desconhecidos ao senhor Trodillick. Como na época eu não sabia disso, fugi com eles pensando que também minha vida corria perigo. Na fuga, infelizmente, acabei matando um miliciano. Fui preso, mas meus colegas fugiram. Eu suponho.
Eu tinha rancor. Não posso me considerar um homem puro, de sentimentos bonzinhos o tempo todo. Não sou devoto de Marah ou Lena. Eu me senti traído. Eu lutei (mal, é verdade) e fui preso, quase morri. Tudo para que os salafrários Yurden e Blasco pudessem fugir. Dois mentirosos, bandidos que vivem de golpes e a enganar pessoas com histórias. Criador de Vectora, mago de extremo poder. Isso que Yurden dizia ser. Maldito seja.
Elinia e Dorks não gostavam de mim. Não pestanejaram em salvar seus pescoços. Mas mesmo assim, senti que não deveria entregá-los, não eram más pessoas. Por isso, inventei essa coisa de Margaret e Brax. Já Patrick eu sentia um pouco de pena dele, o garoto parecia mesmo perdido e ainda possuía muito potencial pela frente. Fiquei mesmo admirado com sua habilidade mágica de convencimento, sem mesmo conjurar nenhuma magia. O lefou era um herói, por assim dizer. Ou um tolo. Naquele momento, eu o achei mais um tolo, como eu, por ter se sacrificado para salvar a todos. A troco de nada.
- Eu já sei disso tudo. Quero que você me diga o que sabe. Se continuar enrolado, você sentirá muita dor.
O homem de uns quarenta anos sacou uma maça e deu alguns passos à frente. Eu estremeci e dei um passo atrás.
- Contei a verdade. O camponês de Pondsmânia queria ajuda para alguma coisa, acho que seus familiares desapareceram e ele pediu ajuda aos salafrários Yurden e Blasco.
Esse foi meu segundo erro.
Um segundo depois, meu ombro explodiu em sangue. Sem medo de exagerar, pude sentir meus ossos esmigalharem em mil pedaços. Certo, isso foi um exagero. O fato é que o tal homem me atingiu no ombro direito, aquele mesmo ombro que já estava luxado. A dor quase me fez cair. Dei alguns passos para trás, gritando de dor.
Quando eu era adolescente, lá por volta dos meus dezessete anos, eu levei um golpe de maça de um goblinóide, na Favela Goblin. A dor era muito grande, eu lembro que prometi a mim mesmo nunca mais ser atingido por uma maça. É o pior tipo de dor. O corte rasga sua pele, sua carne e faz o sangue brotar em profusão. A perfuração faz um buraco menor que o corte, mas mais profundo, podendo causar danificações a órgãos internos. Mas o golpe de concussão é temível. Faz músculos doerem para sempre, pode danificar órgãos internos pela onda do impacto, além de quebrar ossos. E esses ferimentos demoram muito tempo para regenerar. Então, sim, eu posso exagerar aqui. O golpe de uma maça é um dos mais terríveis para se sentir dor.
- Vou te dar mais uma chance. A última. Se mentir ou me enrolar de novo, eu vou acertar a sua cabeça.
O homem não brincava. Ele estava sério e sisudo. Atrás dele, os milicianos que escoltavam o regente da cidade mostravam sorrisos satisfeitos. Eu era o assassino de seu amigo, alguém que dividiam a cerveja, conversava sobre a vida. Eu os roubei um amigo. O regente Trodillick estava calmo, com olhar de tédio.
- Está bem! Eu conto tudo.
Decidi que não iria mais sofrer por aqueles que me abandonaram à morte. Mesmo Elinia e Dorks, peço desculpas. Naquele momento eu pensava que vocês estariam muito longe, salvos. Podiam voltar para as montanhas de onde vieram e poderiam se livrar da perseguição dos milicianos. O resto, eu quero mesmo é que se exploda.
Além do mais, o cara havia demonstrado claramente que sabia de tudo, só queria que eu falasse a verdade.
- Não é Margaret e Brax. Seus nomes são Elinia e Dorks. Ela é druida de Allihanna e ele é um bárbaro selvagem. O camponês de Pondsmânia se chama Patrick. Ele é um feiticeiro. Eu, Elinia e Dorks fomos interpelados pelo enganador Yurden e seu guarda-costas Blasco. Patrick teve sua família raptada, ou algo assim. E nossa missão era ir até o lago. Algum lago mágico ao sul do reino de Sckharshantallas. Aparentemente, lá estava sua família. E isso é tudo.
O meu agressor virou o rosto mirando o regente da cidade. Trodillick deu as costas e começou a ir embora. Os milicianos o seguiram. Depois, o homem que quase destruiu meu ombro, virou-se e foi embora sem dizer nenhuma palavra.
Eu me joguei ao chão, encostando as costas na parede. Os milicianos ainda conversaram entre si e eu pude ouvir.
- Bom trabalho, Richard. O marginal falou. – Um disse.
- É isso aí. – Disse outro. Richard, o homem que aparentava ter quarenta anos nada disse. Ao invés disso, Trodillick falou.
- Chamem o Caçador.
Aparentemente, os meus ex-colegas haviam entrado numa enrascada. Trodillick não pouparia esforços para caçá-los. Acredito que o lago mágico tem alguma coisa a ver. Minha curiosidade foi embora quando decidi dormir.
- Você está bem? – Era Fenris. Eu ri.
- Claro, essa massagem no meu ombro foi perfeita para aliviar minhas dores. Essa espelunca é a pior estalagem do mundo.
Não demorou muito para dois milicianos voltarem. Eram outros dois, nunca tinha visto. Pegaram a mim e a Fenris também. Então, eu pude ver que ele era um elfo. Para mim, os elfos eram coitados, pessoas amarguradas e cada vez mais raras. Depois que a sua deusa deixou de figurar no Panteão e se tornou escrava de Tauron, eles se tornaram cada vez mais raros, pelo menos pra mim. Ver um elfo agitado como aquele, falando ser de Wynlla, me fez pensar que ele talvez pudesse ser louco.
De qualquer maneira, fomos encaminhados para uma carroça-prisão, uma gaiola de madeira e barras de ferro bem grossas onde ficaríamos presos. Os dois milicianos conduziam a carroça e partimos logo após o meio-dia.
Saímos da cidade, entramos no campo. Vastas plantações que abasteciam a cidade. Pelos comentários jocosos dos milicianos, tínhamos um destino cruel nos esperando. Faríamos pequenas paradas em postos avançados de mais milicianos e soldados do reino, onde eles pegariam mantimentos, suprimentos. A cada pausa, ficávamos esperando os milicianos resolverem tudo e depois voltávamos à rotina de sacolejar na carroça. A estrada era até bem pavimentada, mas não muito limpa, com muitas pedras espalhadas aleatoriamente. Era um sacolejo ruim.
- E aí, Fenris, pronto para fazer sua mágica? – Eu disse em dracônico. Não queria que o milicianos soubessem de nada.
- Cara, acho que não é inteligente falar essa língua num reino onde o regente é um dragão. – Respondeu Fenris, mas em dracônico também.
Eu me senti estúpido por um minuto, mas depois lembrei que a língua é muito difícil de ser aprendida. Não é para qualquer um. E até parece que reles milicianos iriam aprendê-la. O regente não permitiria que sua língua fosse expelida da boca de criaturas tão inferiores como nós humanos.
- Vamos, o que você sabe fazer?
- Eu sei hipnotizar e tornar alguém amigável. Sei também conjurar uma armadura mágica e a magia sono.
Ele não era muito bom e parecia ter as capacidades de Patrick.
- Sono. Ponha-os para dormir. Mas não agora, quando uma melhor oportunidade surgir. – Eu disse, olhando em volta da cela. Fiquei preocupado e desejoso de reaver minha katana. Não tinha certeza, mas aqueles milicianos poderiam estar levando-a para vender em algum lugar. Afinal, uma katana vale quatrocentos tibares de ouro. É uma fortuna considerável para eles. E pra mim, tinha um grande valor sentimental.
Ao anoitecer desse longo dia, vimos que a estrada entrecortava uma colina. Era um lugar ótimo, pois estaríamos longe o suficiente de Thenarallan. Falei um “agora” em dracônico e Fenris prontamente pronunciou palavras mágicas enquanto gesticulava com os dedos. Eram palavras diferentes e gestos diferentes usados por Patrick. Acho que era uma diferença existente entre feiticeiros e magos. Os primeiros conjuram magias vinda do sangue, de forma espontânea. Os segundos estudavam a magia com gestos mais estoicos.
Apenas um dos guardas dormiu, entretanto. A carroça parou. O outro saiu com uma lança em punho. A perfuração. É o menor tipo de dor, mas o que pode causar mais estragos se acertar o pulmão, coração...
Fenris caiu com o golpe, eu fui atingido também. Tentei desarmá-lo num gesto de extrema loucura. Eu estava cansado de ficar só apanhando. Era a hora de revidar. Esse foi meu terceiro erro. O miliciano me furou novamente e eu quase perdi a consciência. Logo depois, desmoralizados e feridos, vimos o maldito acordar o miliciano que dormia. Nós avançamos mais um pouco, mas as coisas mudaram radicalmente em seguida.
Vi o lefou, este mesmo, vivo. Correndo em direção da carroça. Vi Dorks também em algum lugar. Estaria eu delirando? Ouvi um combate ao longe. Eu estava muito ferido para precisar exatamente tudo que acontecia. Subitamente, mais um solavanco. A carroça começou a correr. E depois, mais sonhos.
Estava em Valkaria bebendo com Dorks e o lefou. O troglodita falava com desenvoltura e tomava um chá, segurado delicadamente por seus dedos com garras afiadas. Ele comentava sobre a economia de Valkaria, abalada nos últimos anos por conta das Guerras Táuricas, do ataque de Mestre Arsenal. Dizia também que era a hora da princesa Rhanna sair de seu esconderijo e exigir a coroa de Rainha de Deheon. Ele não era um partidário da Rainha-Imperatriz Shivara Sharpblade. Aquele sonho era absurdo demais. O lefou resmungava qualquer coisa e me olhava com raiva.
- Eu já disse, não matei o miliciano por querer. Pare de me atormentar. E alias, por que você se importa tanto assim?
O lefou riu alto. Dorks o acompanhou, mas com uma risada afetada, como um nobre engomado. Uma fênix dourada brilhou do peito do lefou, enquanto ele estava de pé, de braços abertos.
Súbito, dores excruciantes. Abri um olho, saindo do meu sonho. Senti como se alguns ferimentos se fechassem. Aos poucos, pude sentir também uma mão sobre meu braço, o único fora dos escombros. “Que escombros?” eu me perguntei.

Por algum motivo, a carroça estava totalmente destruída, virada. Cavalos presos, tentando se levantar. Um miliciano estava morto. O outro, de pé em algum lugar. Sem entender nada, eu também não podia me mover devido aos ferimentos. Acho que era Elinia quem me curava com seus dons mágicos vindos de Allihanna. Ela mostrava alguma preocupação para comigo, enfim.

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