O dia do descanso, Valag,
sempre me foi agradável. Era um daqueles dias em que eu relaxava, como todos os
trabalhadores. Mesmo eu nunca tendo trabalhado manualmente como um plebeu, eu
gostava de aproveitar as “não idas” à escola ou à Universidade. Gostava de ler
meus contos tamuranianos e de beber em tavernas à noite com alguns gatos
pingados. A maioria daqueles que trabalhavam, aproveitavam o final do dia de
descanso para... bem, descansar. E recomeçar o novo dia de trabalho com plenas
forças.
Porém, o dia 17 de Dantal de
1410 foi um Valag atípico. Um dia de dor e sofrimento. Semelhante ao dia
anterior. Porém, dessa vez, passei a maior parte do tempo desacordado, incapaz
de me mover. Preso à minha mente, atormentado por minhas reflexões paranoicas e
cheias de medo.
Como o caro leitor bem sabe, no
dia anterior eu fui preso e levado numa carroça para um destino cruel, na
companhia do elfo Fenris, um exótico mago de Wynlla. Acontece que,
aparentemente, Dorks e o lefou surgiram do nada para me salvar. Posso supor
isso, pois não tinham qualquer outro motivo para atacar aquela carroça e
arriscar suas vidas na luta contra dois milicianos. Bem, poderia supor que eles
queriam salvar Fenris. Aliás, não Dorks. Ele me conhecia. Confio nele, por mais
estranho que isso possa parecer. Ele é um troglodita, não sabe falar, age como
um bárbaro, mas tem um coração bom. Assim como Elinia. Depois que a carroça
virou inexplicavelmente (eu não sabia como), eu fui esmagado pelos destroços de
madeira e ferro. O poder de cura de Allihanna, através do toque delicado de
Elinia, me salvou. Sou grato a ambas por isso.
Entretanto, eu estava muito
ferido. Longe demais do alcance dos milagres da deusa da natureza. Por isso,
fiquei desacordado praticamente o dia inteiro. Dessa forma, posso apenas supor,
conjecturar o que houve e, somado aos relatos que me contaram posteriormente,
conseguirei construir uma narrativa sobre os acontecimentos daquele Valag.
Em primeiro lugar, ainda no dia
anterior, me carregaram de algum modo pela estrada até sairmos do caminho
proposto. Não lembro o que fizeram com os milicianos. Eu supus que os tivessem matado.
Mesmo desacordado, ouvia
algumas conversas. O grupo parecia tentar decidir para aonde iria e o que iria
fazer. Pelo que entendi, eles não conheciam Fenris. E ele estava morto,
desfigurado pela destruição da carroça. Dessa vez, tive muita sorte de estar
vivo. Obrigado, Valkaria, por isso.
O grupo dormiu acampado próximo
a uma floresta. O cheiro de plantas era algo que eu conseguia lembrar. O meu
olfato era o único sentido funcionando no momento. Eu sequer senti a grama fofa
sob meu corpo. O lefou falava bastante, eu acho. Posso supor que seu nome era
Draco, Drakken, Drake, algo assim. Patrick também era um dos que mais falava.
A noite, para mim, foi
indiferente, indolor. Sonhei com minha casa novamente. Dizem que você sonha com
aquilo que mais deseja. E bem, isso é verdade nesse caso. Sempre quis ser herói
aventureiro e viajar pelo mundo. Mas nunca imaginei que estaria tão longe de
casa, sob tais circunstâncias ruins e desesperadoras. Meu corpo estava ferido
demais a ponto de ser incapaz de me mover. Minha katana, presente de meu pai,
havia sido perdida. Sckharshantallas iria pagar caro ainda. Ah, se ia.
Depois eu soube que fomos
atacados por felinos grandes, acho que panteras, leopardos, algo do tipo. E
nisso, um cavalo foi morto e o outro foi ferido. Sim, o grupo havia levado os
cavalos dos milicianos consigo. Algo esperto que daria maior velocidade e
poderia me carregar.
Então, veio o dia de Valag,
descanso para todos os trabalhadores do mundo. Menos para nós, aventureiros. Se
eu estivesse acordado e bem, falaria isso com pomposidade e fanfarronice. Eu
gemi pela manhã. Lembro-me disso. Mas acho que ninguém ouviu. O calor
escaldante foi um incentivo a acordar. Eu suava e isso era um bom sinal,
significava que meu corpo começava a reagir normalmente, mesmo muito ferido. Eu
iria sobreviver, enfim.
Lá pelo horário do almoço, o
momento mais quente do dia, paramos. Quer dizer, eles pararam para almoçar.
Eles eram um grupo e eu, um fardo. Detesto me sentir um fardo assim. Sempre
quis ser mais um que contribuiria com um grupo com minhas habilidades e
conhecimento. Oras, tenho potencial de dragão, posso acrescentar muito a um
grupo de heróis. Infelizmente, Nimb tem rolado dados muito ruins para mim até
agora.
Tendo uma criação confortável,
com tibares de ouro sem falta, eu acabei não vivenciando dificuldades da vida
comum, na prática. Mesmo que durante minha adolescência em Valkaria tivesse
tido alguma experiência com fatos inusitados – que serão abordados em outro
diário – eu ainda não tinha vivenciado o que era mesmo ser um aventureiro. E,
até onde eu sabia, estava fracassando nesse quesito.
O grupo estava formado, unido
por uma infelicidade. Yurden e Blasco enganaram todos nós e isso acabou nos
unindo para fugir de Thenallaran. Acho que mesmo depois de escapar, o grupo
permaneceu unido. E ainda tinha o problema familiar de Patrick, que eu queria
ajudar a resolver, de todo meu coração. Parecia que o restante do grupo também
queria.
E havia Elinia. Não sei por
que, o rosto dela sempre voltava à minha mente. Ela era uma linda menina, muito
jovem, mas muito madura. E tinha problemas tão grandes que ela recusava,
inclusive, ajuda. Ela tem que entender que nem todo mundo precisa enfrentar
todos os problemas do mundo sozinho. Mas eu não poderia falar nada. Estava ali,
desmaiado. Será que eu conseguiria provar que era um bom espadachim depois da
minha pífia exibição perante os cachorros dos milicianos?
Eu me lembro de ouvir a voz de
Blasco em algum momento do dia. O crápula estava conosco. Mas Yurden não. O que
o halfling teria falado para eles para continuar no grupo? E por que Yurden,
que parecia ter uma língua mais afiada, propenso a enganar, não estava conosco?
Eu detestava não saber o que acontecia e detestava mais ainda não conseguir
falar ou me mover.
Falaram-me depois que descemos
em uma pequena depressão, onde tinha um lago. Não, não era o tal lago mágico
onde a família de Patrick supostamente estava. Era um lago comum, onde o grupo
parou para encher os cantis e, talvez, lavar coisas importantes. Se eu
estivesse de pé, tomaria um banho. Devia estar fétido como um cadáver.
Foi no lago que o grupo se
deparou com mais duas pessoas. Isso eu não pude reparar. Àquela altura do dia,
meu estado de semiconsciência não me permitiu mais distinguir vozes. Isso foi
me contado depois. Aparentemente eram dois humanos. Ele contou que o grupo
estava sendo caçado pelas autoridades como um bando perigoso. E eu tinha um cartaz
de procurado, um desenho impecável do meu ser. E existe uma recompensa.
Que maravilha!
Sou aventureiro há meio mês e
já sou caçado em um reino longínquo. Um bandido fora-da-lei. Você, leitor, pode
estar achando que estou sendo sarcástico. Mas não, é a mais pura sinceridade.
Em um reino sob o domínio de um governo tirano, seja do rei dos dragões
vermelhos, seja de seus filhos, é sempre algo positivo estar contra a lei.
Significa que os heróis são foras-da-lei e os bandidos são a ordem. A lei está
a serviço da opressão.
Aparentemente, o grupo aceitou
as duas novas pessoas no bando. Antes que seguíssemos caminho, eu ouvi um
estampido, uma explosão. Cheiro de pólvora. Eram as temíveis armas de fogo.
Em todo o Reinado, as armas de
fogo são proibidas por sua instabilidade e poder destrutivo. O antigo
Rei-Imperador Thormy as proibiu e sua sucessora, a Rainha-Imperatriz Shivara
Sharpblade manteve a lei. Entretanto, isso não impedia outros foras-da-lei
(dessa vez, da lei boa) de usá-las. Eram tipos exóticos, chamados de
pistoleiros. Geralmente eram carrancudos, páreas da sociedade, mercenários.
Falando nisso, eu me lembrei do
comentário de um miliciano, enquanto eu estava preso ainda na cadeia em
Thenallaran. Sobre um caçador. Ou caçadores. Acho que o regente da cidade
contratou um pistoleiro para caçar o grupo.
Sei que houve muito tiro,
gritos, e o grupo fugiu. Eu fui salvo, carregado numa carroça que era puxada
por um trobo. Certamente pertencia aos dois novos integrantes do grupo que
recém haviam chegado.
Até aí, eu já começava a estar
mais ciente das coisas ao meu redor. As dores ainda me eram estapafúrdias, mas
eu achava que estava prestes a acordar. Ouvi Elinia orar por Allihanna durante
a fuga. Alguma coisa parece ter feito o pistoleiro ficar para trás. Provavelmente,
um milagre da deusa da natureza foi o responsável por despistarmos o inimigo.
Chegamos à estrada principal,
novamente. E eu abri os olhos, lentamente.
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