terça-feira, 22 de outubro de 2013

Diário de Aldred C. Maedoc III - Parte 4



Valag 17, Dantal, 1410 CE.

O dia do descanso, Valag, sempre me foi agradável. Era um daqueles dias em que eu relaxava, como todos os trabalhadores. Mesmo eu nunca tendo trabalhado manualmente como um plebeu, eu gostava de aproveitar as “não idas” à escola ou à Universidade. Gostava de ler meus contos tamuranianos e de beber em tavernas à noite com alguns gatos pingados. A maioria daqueles que trabalhavam, aproveitavam o final do dia de descanso para... bem, descansar. E recomeçar o novo dia de trabalho com plenas forças.
Porém, o dia 17 de Dantal de 1410 foi um Valag atípico. Um dia de dor e sofrimento. Semelhante ao dia anterior. Porém, dessa vez, passei a maior parte do tempo desacordado, incapaz de me mover. Preso à minha mente, atormentado por minhas reflexões paranoicas e cheias de medo.

Como o caro leitor bem sabe, no dia anterior eu fui preso e levado numa carroça para um destino cruel, na companhia do elfo Fenris, um exótico mago de Wynlla. Acontece que, aparentemente, Dorks e o lefou surgiram do nada para me salvar. Posso supor isso, pois não tinham qualquer outro motivo para atacar aquela carroça e arriscar suas vidas na luta contra dois milicianos. Bem, poderia supor que eles queriam salvar Fenris. Aliás, não Dorks. Ele me conhecia. Confio nele, por mais estranho que isso possa parecer. Ele é um troglodita, não sabe falar, age como um bárbaro, mas tem um coração bom. Assim como Elinia. Depois que a carroça virou inexplicavelmente (eu não sabia como), eu fui esmagado pelos destroços de madeira e ferro. O poder de cura de Allihanna, através do toque delicado de Elinia, me salvou. Sou grato a ambas por isso.
Entretanto, eu estava muito ferido. Longe demais do alcance dos milagres da deusa da natureza. Por isso, fiquei desacordado praticamente o dia inteiro. Dessa forma, posso apenas supor, conjecturar o que houve e, somado aos relatos que me contaram posteriormente, conseguirei construir uma narrativa sobre os acontecimentos daquele Valag.
Em primeiro lugar, ainda no dia anterior, me carregaram de algum modo pela estrada até sairmos do caminho proposto. Não lembro o que fizeram com os milicianos. Eu supus que os tivessem matado.
Mesmo desacordado, ouvia algumas conversas. O grupo parecia tentar decidir para aonde iria e o que iria fazer. Pelo que entendi, eles não conheciam Fenris. E ele estava morto, desfigurado pela destruição da carroça. Dessa vez, tive muita sorte de estar vivo. Obrigado, Valkaria, por isso.
O grupo dormiu acampado próximo a uma floresta. O cheiro de plantas era algo que eu conseguia lembrar. O meu olfato era o único sentido funcionando no momento. Eu sequer senti a grama fofa sob meu corpo. O lefou falava bastante, eu acho. Posso supor que seu nome era Draco, Drakken, Drake, algo assim. Patrick também era um dos que mais falava.
A noite, para mim, foi indiferente, indolor. Sonhei com minha casa novamente. Dizem que você sonha com aquilo que mais deseja. E bem, isso é verdade nesse caso. Sempre quis ser herói aventureiro e viajar pelo mundo. Mas nunca imaginei que estaria tão longe de casa, sob tais circunstâncias ruins e desesperadoras. Meu corpo estava ferido demais a ponto de ser incapaz de me mover. Minha katana, presente de meu pai, havia sido perdida. Sckharshantallas iria pagar caro ainda. Ah, se ia.
Depois eu soube que fomos atacados por felinos grandes, acho que panteras, leopardos, algo do tipo. E nisso, um cavalo foi morto e o outro foi ferido. Sim, o grupo havia levado os cavalos dos milicianos consigo. Algo esperto que daria maior velocidade e poderia me carregar.
Então, veio o dia de Valag, descanso para todos os trabalhadores do mundo. Menos para nós, aventureiros. Se eu estivesse acordado e bem, falaria isso com pomposidade e fanfarronice. Eu gemi pela manhã. Lembro-me disso. Mas acho que ninguém ouviu. O calor escaldante foi um incentivo a acordar. Eu suava e isso era um bom sinal, significava que meu corpo começava a reagir normalmente, mesmo muito ferido. Eu iria sobreviver, enfim.
Lá pelo horário do almoço, o momento mais quente do dia, paramos. Quer dizer, eles pararam para almoçar. Eles eram um grupo e eu, um fardo. Detesto me sentir um fardo assim. Sempre quis ser mais um que contribuiria com um grupo com minhas habilidades e conhecimento. Oras, tenho potencial de dragão, posso acrescentar muito a um grupo de heróis. Infelizmente, Nimb tem rolado dados muito ruins para mim até agora.
Tendo uma criação confortável, com tibares de ouro sem falta, eu acabei não vivenciando dificuldades da vida comum, na prática. Mesmo que durante minha adolescência em Valkaria tivesse tido alguma experiência com fatos inusitados – que serão abordados em outro diário – eu ainda não tinha vivenciado o que era mesmo ser um aventureiro. E, até onde eu sabia, estava fracassando nesse quesito.
O grupo estava formado, unido por uma infelicidade. Yurden e Blasco enganaram todos nós e isso acabou nos unindo para fugir de Thenallaran. Acho que mesmo depois de escapar, o grupo permaneceu unido. E ainda tinha o problema familiar de Patrick, que eu queria ajudar a resolver, de todo meu coração. Parecia que o restante do grupo também queria.
E havia Elinia. Não sei por que, o rosto dela sempre voltava à minha mente. Ela era uma linda menina, muito jovem, mas muito madura. E tinha problemas tão grandes que ela recusava, inclusive, ajuda. Ela tem que entender que nem todo mundo precisa enfrentar todos os problemas do mundo sozinho. Mas eu não poderia falar nada. Estava ali, desmaiado. Será que eu conseguiria provar que era um bom espadachim depois da minha pífia exibição perante os cachorros dos milicianos?
Eu me lembro de ouvir a voz de Blasco em algum momento do dia. O crápula estava conosco. Mas Yurden não. O que o halfling teria falado para eles para continuar no grupo? E por que Yurden, que parecia ter uma língua mais afiada, propenso a enganar, não estava conosco? Eu detestava não saber o que acontecia e detestava mais ainda não conseguir falar ou me mover.
Falaram-me depois que descemos em uma pequena depressão, onde tinha um lago. Não, não era o tal lago mágico onde a família de Patrick supostamente estava. Era um lago comum, onde o grupo parou para encher os cantis e, talvez, lavar coisas importantes. Se eu estivesse de pé, tomaria um banho. Devia estar fétido como um cadáver.
Foi no lago que o grupo se deparou com mais duas pessoas. Isso eu não pude reparar. Àquela altura do dia, meu estado de semiconsciência não me permitiu mais distinguir vozes. Isso foi me contado depois. Aparentemente eram dois humanos. Ele contou que o grupo estava sendo caçado pelas autoridades como um bando perigoso. E eu tinha um cartaz de procurado, um desenho impecável do meu ser. E existe uma recompensa.
Que maravilha!
Sou aventureiro há meio mês e já sou caçado em um reino longínquo. Um bandido fora-da-lei. Você, leitor, pode estar achando que estou sendo sarcástico. Mas não, é a mais pura sinceridade. Em um reino sob o domínio de um governo tirano, seja do rei dos dragões vermelhos, seja de seus filhos, é sempre algo positivo estar contra a lei. Significa que os heróis são foras-da-lei e os bandidos são a ordem. A lei está a serviço da opressão.
Aparentemente, o grupo aceitou as duas novas pessoas no bando. Antes que seguíssemos caminho, eu ouvi um estampido, uma explosão. Cheiro de pólvora. Eram as temíveis armas de fogo.
Em todo o Reinado, as armas de fogo são proibidas por sua instabilidade e poder destrutivo. O antigo Rei-Imperador Thormy as proibiu e sua sucessora, a Rainha-Imperatriz Shivara Sharpblade manteve a lei. Entretanto, isso não impedia outros foras-da-lei (dessa vez, da lei boa) de usá-las. Eram tipos exóticos, chamados de pistoleiros. Geralmente eram carrancudos, páreas da sociedade, mercenários.
Falando nisso, eu me lembrei do comentário de um miliciano, enquanto eu estava preso ainda na cadeia em Thenallaran. Sobre um caçador. Ou caçadores. Acho que o regente da cidade contratou um pistoleiro para caçar o grupo.
Sei que houve muito tiro, gritos, e o grupo fugiu. Eu fui salvo, carregado numa carroça que era puxada por um trobo. Certamente pertencia aos dois novos integrantes do grupo que recém haviam chegado.
Até aí, eu já começava a estar mais ciente das coisas ao meu redor. As dores ainda me eram estapafúrdias, mas eu achava que estava prestes a acordar. Ouvi Elinia orar por Allihanna durante a fuga. Alguma coisa parece ter feito o pistoleiro ficar para trás. Provavelmente, um milagre da deusa da natureza foi o responsável por despistarmos o inimigo.

Chegamos à estrada principal, novamente. E eu abri os olhos, lentamente.

Nenhum comentário: