quinta-feira, 17 de abril de 2014

Diário de Aldred C. Maedoc III - Parte 18

Aztag 23, Weez, 1410 CE.

A noite engolia o dia no final de uma velha trilha muito pouco usada nos tempos recentes no reino de Wynlla. Àquela altura, meu coração estava inquieto pelo que estava por vir. O medo e o receio se fortaleciam com minha ansiedade. Cães enormes surgiram mesclados à escuridão, com silhuetas sinistras. Segurei firme minha katana me preparando para o combate. Respirei fundo, primeiro ensinamento de um bom combatente, para tentar controlar a ansiedade e tornar o medo em uma ferramenta de sobrevivência.
Antes.

Éramos uma comitiva em viagem. Uma charrete e uma carruagem. Nathaniel estava em sua carruagem com dois cavalos e tudo o que lhe restou materialmente falando de sua vida em Sophand. Fiquei sabendo também que ele perdera seu item de poder (que eu não me recordo o que era) e, por isso, havia alguma dificuldade de manipular as artes arcanas. O que era curioso, pois foi o momento que achei oportuno para revelar mais capacidades arcanas que eu havia desenvolvido. No começo, Nathaniel demonstrou bastante curiosidade, me fez perguntas sobre feitiçarias que eu não sabia ao certo responder. Meu conhecimento mágico aumentou um pouco, e eu tinha as bases iniciais que me permitiam avançar em um estudo acadêmico. Por fim, revelei que sabia conjurar duas mágicas de proteção muito boas. Uma armadura e um escudo arcano, translúcidos e eficientes. Combinados aos meus movimentos estonteantes (sem medo de exagerar em meus feitos, como um bardo faria, eu realmente era um relâmpago no campo de batalha), eu me tornei um alvo muito difícil de ser atingido. E isso foi um alívio depois de tantas semanas levando bordoada e morrendo inclusive uma vez. “Maldito capitão hobgoblin”, eu pensava. “Agora tu não pode me acertar mais”, eu também gostava de pensar.
Contamos à Nathaniel sobre nossa missão para a Guilda da Sétima Estrela de Wynna (lembrei-me do nome, finalmente) e ele ficou intrigado. Apontou algumas incoerências. No fim, chegamos à conclusão que fomos enganados. Para variar. Éramos um grupo estrangeiro e era natural não sabermos nada do reino. Por isso, a guilda, aparentemente, nos contratou para nos levar a um lugar que NÃO ERA o maldito internato de magia que hoje em dia são ruínas. Afinal, parecia que a Guilda da Sétima Estrela de Wynna queria que enfrentássemos aqueles seres aberrantes da Tormenta e pegássemos a gema com os desgraçados demônios. Levantamos várias hipóteses, pois o demônio daria a gema em troca da ruína de alguém. No caso foi Blasco, mas poderia ser qualquer um de nós. Há indícios, então, de que queriam nos enfraquecer enquanto grupo (como se precisássemos de inimigos para isso!). À aquela altura a gente já aceitava que nossa missão sagrada pelos Rubis da Virtude não era mais secreta. Era possível que alguma divindade estivesse movendo suas peças contra nós. Mas quem? Por quê? Enfim, Nathaniel fez o que um bom acadêmico deve fazer: levantar dúvidas e questões. Por fim, ele analisou o Rubi da Virtude através dos seus livros e até com uma mágica para consultar a própria Wynna. Por fim, ele teve uma resposta inconclusiva. Podia ser como podia não ser um Rubi da Virtude. Desnecessário comentar como isso abalou nossos ânimos. Pelo menos o meu. Cada vez mais eu perdia o interesse nessa contenda.
No dia seguinte, levantamos acampamento após um rápido desjejum. O que teve de relevante nesse momento tão rotineiro nesses últimos meses? Um diálogo. Depois de reclamar mais uma vez (eu sempre reclamei da comida de estrada, das intrépidas rações de viagem com suas carnes secas, frutas cítricas, gorad, pão e queijo. Eu sentia saudades do bacon e do ovo frito), Drake me interpelou com uma voz monótona.
- Você deveria repensar em sua vida de aventuras.
Algo como: “você deveria pensar se é isso mesmo que você quer”. Ou “você não sabia que seria assim?” É claro que eu sabia. Apesar de ter sido vislumbrado, enquanto adolescente, das histórias fantásticas de aventuras dos meus pais e de outros heróis, eu sempre tinha a figura do meu pai, sisuda, carrancuda, para me puxar à realidade. Enquanto minha mãe floreava as aventuras, mostrava os derradeiros finais felizes que tiveram juntos, meu pai mostrava os lados ruins, os aspectos pesados e mais sérios. Então, por mais que eu reclamasse do desjejum diário, de ter que ficar pelo menos duas horas acordado toda noite para fazer turno de vigia (e interrompendo meu sono que me deixaria suficientemente descansado para lutar melhor) e outros problemas e obstáculos desagradáveis (e deselegantes) da vida de aventureiro, apesar de tudo isso, eu gostava do que fazia. Ou pelo menos achava que gostava.
Entretanto, essa ponderação de Drake (que eu não respondi, é claro) me fez pensar diferente pela primeira vez desde que saí de Valkaria através do livro mágico. Talvez fosse a proximidade de casa, talvez fosse a saudade a mola motivadora dos meus pensamentos e emoções daquele momento. Eu pensei que talvez fosse a hora de chegar em casa, rever meus amigos, meus pais, minha irmã, meus primos, tios e as tantas mulheres da minha vida (senti saudades de cada uma delas, seja a elfa Julyana, seja a barda Marina, seja a protótipo de aventureiro Camille, seja a bibliotecária Lucy, seja a professora Isabel, seja aquela pistoleira misteriosa) e ficar. Sim, aposentar a katana e me tornar professor. Jamais seria um miliciano, pois minha opinião sobre soldados é deveras crítica (quem quer ser pau mandado e lutar de forma estoica e sem graça?). Provável que pudesse virar um professor da Universidade Imperial pelo dia e um vigilante pela noite. De qualquer forma, divaguei, fantasiei bastante quanto a isso.
No final do dia, encontramos um pequeno posto comercial que não chegava a ser uma aldeia. Era uma taverna com quartos e estábulo para viajantes passarem a noite. Passamos a noite ali, comemos e bebemos (eu não tinha clima, a ansiedade me consumia até para me divertir) e dormimos. Mas nesta noite foi uma das vezes que mais meu coração me doeu.
Tirando os meus pensamentos egoístas de ficar em Valkaria, pensei em Blasco. Desde que ele abdicou de suas memórias, Victor tem sido seu companheiro mais fiel que Layca à Elinia. Blasco parecia uma criança. Não, pior que isso. Ele se maravilhava com tudo, sentia medo de quase tudo também. Quando anoiteceu pela primeira vez depois do incidente, ele ficou extremamente aflito e emocionado. Dava pra ver seu único olhinho brilhando e suas pernas tremendo. Dava muita pena. Ele falava pouco, se comunicava pouco. Victor tentava falar com ele sobre tudo, contava sobre as vezes em que nós três, principalmente, nos divertimos. E qual foi minha postura? A mais imbecil possível. Aos vinte e quatro anos eu ainda era um garoto mimado e egoísta. Preferi me distanciar mais e mais de Blasco. Sequer troquei uma palavra com ele. Eu notava olhares reprovadores de Victor. Eu não tinha estômago para lidar com Blasco. Não que fosse um incômodo, longe disso. Era simplesmente difícil lidar com aquela perda. Para mim, Blasco estava morto. Aquele não era Blasco, era apenas seu corpo. E isso destruía minha alma. Toda vez que ele falava, eu me calava e olhava para o lado. Sempre saia de perto quando o assunto era sobre ele.
Partimos no dia seguinte, mas não sem antes tomar um bom desjejum. Comi ovos e bacon como há muitas semanas não fazia. Meu desjejum preferido naquele tempo. A cerveja que bebi para empurrar não era das piores também. Com estômago forrado, olhos cegos para Blasco e cabeça distante na estátua de Valkaria, partimos da taverna.
Antes de encontrarmos uma encruzilhada na estrada, Nathaniel nos contou uma história. Um sonho terrível. Minha memória me fez o favor de esquecer alguns detalhes perturbadores. O fato era: envolvia escuridão, criaturas das trevas. Aparentemente, no nosso caminho (sim, ele sonhou com todos nós), enfrentaríamos a escuridão. Porém, havia um sol que nos acompanhava, nos iluminava o caminho no meio da noite. Não tinha cara de sonho comum. Tinha toda pinta de ser um sonho profético. Missão divina, sonhos divinos, Nathaniel era um clérigo de Wynna. Então, achamos por bem considerar aquilo ao invés de ignorá-lo como se ele fosse um louco paranoico. A teoria mais aceita foi que, como cada um dos Rubis da Virtude é ligado a um deus, era provável que cada encontro com um deles tivesse uma “temática” relacionada ao deus específico. Nesse caso, poderia ser Azgher. Ou Tenebra. Ou qualquer coisa.
A encruzilhada. Sim, depois de nos contar sobre seu sonho agourento, a estrada se dividia em duas. Um caminho bastante usado e bem cuidado e outro quase nunca usado, com graminhas e ervas nascendo por toda parte. Elinia e Layca investigaram o terreno e descobriram que uma carroça pesada com carregamento pesado passou por ali não há muito tempo. Era um caminho estranho. Porém, a gente ignoraria se não fosse pelo que Nathaniel nos disse:
- Ali é o caminho que leva para a ruína do internato. O verdadeiro. Não pelo lado que vocês foram.
Engoli seco.
- E daí? Nada tem a ver conosco? – Eu disse rapidamente. Já estava temeroso.
- Tem tudo a ver. Temos que averiguar o lugar. – Drake disse como uma ordem. Detestei aquilo e levantei da carroça.
- Temos que ir para Valkaria.
- O objetivo não é chegar à Valkaria, é encontrar os rubis.
A discussão havia apenas começado. Eu tinha um repertório de réplicas e tréplicas. Poderia escrever um tratado sobre isso. E, por fim, eu poderia dar minha cartada final questionando a liderança de Drake. E, se nem isso desse certo, eu pularia fora da carroça e racharia com o grupo. Para sempre. Valkaria estava ali, era só seguir e eles não queriam. Meu desespero podia crescer exponencialmente. Bem como minha capacidade de fazer besteiras.
Mas Elinia e Layca partiram à frente ignorando todos nós. Dorks veio à minha mente no mesmo instante.
Porém, quando ela tentou se transformar em uma loba como Layca, algo bizarro aconteceu. Não era um lobo comum. Era uma mistura de pelos, pele, músculos à mostra. No seu dorso dava pra ver seus órgãos internos. E ela não parecia notar. O grupo todo ficou abalado. Gulsh sacou seu machado e ficou muito calado. Quando o orc gigante não solta seus comentários sádicos, piadinhas sem graça e fora de hora, quer dizer que está com medo. Blasco também ficou cheio de medo, escondendo-se atrás de Victor. Não sabíamos o que fazer e nem o que esperar de Elinia. Entretanto, ela voltou ao normal subitamente nos indagando o que havia acontecido. Depois de explicarmos, ela ficou cabisbaixa e contou sobre um sonho que teve também. Mas ligado aos lefeu, os malditos demônios da Tormenta. Para mim, aquilo era uma expressão viva, um aviso dos deuses de que precisávamos chegar à Valkaria o quanto antes para encontrarmos um especialista em Tormenta para cuidar daquela corrupção.
Eu preparava meu contra-argumento, mas um grito – mais um gemido – me interrompeu. Uma mulher se arrastava pela estrada velha, cheia de feridas nos braços e pernas, além de sujeira pelo corpo, com sangue seco colado no rosto. Quando ela nos viu, desfaleceu como que aliviada. Elinia e Drake trataram de curá-la.
Sua história era comovente. Uma simples camponesa capturada por homens malignos e servida como ALIMENTOS para cachorros. Ela não entendia o que acontecia, nem por que faziam isso. Ela lamentou a morte de seu pai e de seus irmãos. Eu rangi os dentes ouvindo seu relato terrível. Desnecessário dizer que o herói dentro de mim explodiu pelo meu peito.
- Você será vingada. Não se preocupe. Quem fez isso contigo pagará com a vida. – Eu disse cheio de ódio.
Ela vinha do caminho das ruínas do internado. Ou seja, Drake vencera aquela pequena disputa. Eu mesmo não queria ir mais para Valkaria antes de matar os crápulas. Enchi meu peito de coragem e estava preparado para tudo. Aparentemente era um acampamento de gente ruim, talvez mercenários capturando pessoas como escravas para vender em lugares igualmente malignos. Se havia algo que me tirava (e me tira ainda) do sério, é a supressão da liberdade alheia. Algo mais hediondo que a morte, para mim.
Escravidão é pior que a morte.
Então, nos preparamos para seguir o caminho do internato na velha estrada carcomida pelas ervas daninhas. Mas uma querela surgiu. O que fazer com a camponesa?
- Deixe a vagabunda aí e vamos logo. – Gulsh falou.
- Ela não é nenhuma vagabunda. – Eu disse. Gulsh me ignorou dando de ombros.
- Vamos levá-la conosco, pois não é uma boa ideia voltarmos para aquela taverna de estrada. – Drake sugeriu.
- É loucura a fazermos voltar para o lugar que lutou tanto para fugir. – Eu disse. – Mas sempre podemos perguntar a ela o que quer.
- Não, não quero voltar. – Ela disse com olhos esbugalhados e chorando em seguida. Ela provava meu ponto. Podia ter perdido a pequena disputa para onde íamos, mas aquela querela eu ia ganhar certamente.
- Você tem ideia melhor? – Drake perguntou.
- Sim. Um de nós, que não seja o Blasco, pode voltar com ela para a taverna. Não sei quem faria isso, pois todos nós somos necessários nessa contenda. – Respondi. A verdade era que eu não sabia muito bem o rumo a tomar.
- Eu a ajudarei. – Disse Nathaniel.
Em seguida, ele retirou seus pertences de sua carroça (eu o ajudei) e deu seus dois belos cavalos para levá-la de volta para a taverna. Ele deu uma moeda de ouro e eu dei um saquinho com uns quinze tibares de ouro dentro. Ela poderia voltar e recomeçar a vida de alguma forma. Era o mais humano a se fazer.
Voltamos para a estrada. Seguimos nosso caminho. Foi tão longo que o dia começou a ir embora. Porém, escureceu rápido demais. Havia, literalmente, uma área escura como a alta noite. Ali, Azgher não tinha vez. Nosso destino, uma verdadeira ruina do que poderia ter sido uma escola, um internato de fato, estava envolto a trovões e tempestades. O lugar era tenebroso e, obviamente, perigoso. Conjurei a Armadura Arcana (que tinha uma durabilidade maior que o escudo mágico) e me preparei. Ouvimos, subitamente, uivos. Saquei a katana rapidamente e me preparei, olhando para todos os lados.
Do chão, como se chamados pela própria deusa das trevas, cães malditos surgiram com rosnados e uivos sinistros. Tinha quase um metro de altura e sua pelagem era de um negro profundo como a noite sem lua.
Saltamos da carroça para o combate. Antes, entretanto, eu conjurei o Escudo Arcano. A combinação dos meus dotes físicos e mágicos me garantiu uma boa proteção. A luta não foi demorada. Quatro cães sombrios, lutamos bem. Layca, entretanto, sofreu bastante. Apanhou com veemência e quase morreu. Desse lado da carroça, eu e Elinia ficávamos em dois cães. Castiel tocava sua ocarina para nos inspirar. Dessa vez foi uma música agitada, um épico heroico. Realmente nos inspirava. Pelo menos a mim. Eu adorava lutar sob sua trilha sonora.
Do outro lado, Gulsh e Drake se ocupavam dos outros monstros. Blasco chegou a ser agarrado, coitado e quase foi devorado. Victor o ajudou e conseguiu libertá-lo. Depois, juntou-se a Gulsh e Drake. Nathaniel ficou sobre a carroça, o que era esperado, e conjurou seus mísseis mágicos. Eu fiquei cheio de vontade de conjurar também para medir qual era o mais poderoso, mas não tive oportunidade. Minha técnica com a katana era mais eficiente que minha magia, certamente.

Matamos alguns, mas no fim, eles fugiram. Porém, ouvimos uivos, assovios. Criaturas uivando, eu imaginei serem outros cães malditos. Mas assovios? Talvez fossem os homens escravagistas. Ou talvez fossem algo pior...

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