Aztag
23, Weez, 1410 CE.
A noite engolia o dia no final
de uma velha trilha muito pouco usada nos tempos recentes no reino de Wynlla.
Àquela altura, meu coração estava inquieto pelo que estava por vir. O medo e o
receio se fortaleciam com minha ansiedade. Cães enormes surgiram mesclados à
escuridão, com silhuetas sinistras. Segurei firme minha katana me preparando
para o combate. Respirei fundo, primeiro ensinamento de um bom combatente, para
tentar controlar a ansiedade e tornar o medo em uma ferramenta de
sobrevivência.
Antes.
Éramos uma comitiva em viagem.
Uma charrete e uma carruagem. Nathaniel estava em sua carruagem com dois
cavalos e tudo o que lhe restou materialmente falando de sua vida em Sophand.
Fiquei sabendo também que ele perdera seu item de poder (que eu não me recordo
o que era) e, por isso, havia alguma dificuldade de manipular as artes arcanas.
O que era curioso, pois foi o momento que achei oportuno para revelar mais
capacidades arcanas que eu havia desenvolvido. No começo, Nathaniel demonstrou
bastante curiosidade, me fez perguntas sobre feitiçarias que eu não sabia ao
certo responder. Meu conhecimento mágico aumentou um pouco, e eu tinha as bases
iniciais que me permitiam avançar em um estudo acadêmico. Por fim, revelei que
sabia conjurar duas mágicas de proteção muito boas. Uma armadura e um escudo arcano,
translúcidos e eficientes. Combinados aos meus movimentos estonteantes (sem
medo de exagerar em meus feitos, como um bardo faria, eu realmente era um
relâmpago no campo de batalha), eu me tornei um alvo muito difícil de ser
atingido. E isso foi um alívio depois de tantas semanas levando bordoada e
morrendo inclusive uma vez. “Maldito capitão hobgoblin”, eu pensava. “Agora tu
não pode me acertar mais”, eu também gostava de pensar.
Contamos à Nathaniel sobre
nossa missão para a Guilda da Sétima Estrela de Wynna (lembrei-me do nome,
finalmente) e ele ficou intrigado. Apontou algumas incoerências. No fim,
chegamos à conclusão que fomos enganados. Para variar. Éramos um grupo
estrangeiro e era natural não sabermos nada do reino. Por isso, a guilda,
aparentemente, nos contratou para nos levar a um lugar que NÃO ERA o maldito
internato de magia que hoje em dia são ruínas. Afinal, parecia que a Guilda da
Sétima Estrela de Wynna queria que enfrentássemos aqueles seres aberrantes da
Tormenta e pegássemos a gema com os desgraçados demônios. Levantamos várias hipóteses,
pois o demônio daria a gema em troca da ruína de alguém. No caso foi Blasco,
mas poderia ser qualquer um de nós. Há indícios, então, de que queriam nos
enfraquecer enquanto grupo (como se precisássemos de inimigos para isso!). À
aquela altura a gente já aceitava que nossa missão sagrada pelos Rubis da
Virtude não era mais secreta. Era possível que alguma divindade estivesse
movendo suas peças contra nós. Mas quem? Por quê? Enfim, Nathaniel fez o que um
bom acadêmico deve fazer: levantar dúvidas e questões. Por fim, ele analisou o
Rubi da Virtude através dos seus livros e até com uma mágica para consultar a
própria Wynna. Por fim, ele teve uma resposta inconclusiva. Podia ser como podia
não ser um Rubi da Virtude. Desnecessário comentar como isso abalou nossos
ânimos. Pelo menos o meu. Cada vez mais eu perdia o interesse nessa contenda.
No dia seguinte, levantamos
acampamento após um rápido desjejum. O que teve de relevante nesse momento tão
rotineiro nesses últimos meses? Um diálogo. Depois de reclamar mais uma vez (eu
sempre reclamei da comida de estrada, das intrépidas rações de viagem com suas
carnes secas, frutas cítricas, gorad, pão e queijo. Eu sentia saudades do bacon
e do ovo frito), Drake me interpelou com uma voz monótona.
- Você deveria repensar em sua
vida de aventuras.
Algo como: “você deveria pensar
se é isso mesmo que você quer”. Ou “você não sabia que seria assim?” É claro
que eu sabia. Apesar de ter sido vislumbrado, enquanto adolescente, das
histórias fantásticas de aventuras dos meus pais e de outros heróis, eu sempre
tinha a figura do meu pai, sisuda, carrancuda, para me puxar à realidade. Enquanto
minha mãe floreava as aventuras, mostrava os derradeiros finais felizes que
tiveram juntos, meu pai mostrava os lados ruins, os aspectos pesados e mais
sérios. Então, por mais que eu reclamasse do desjejum diário, de ter que ficar
pelo menos duas horas acordado toda noite para fazer turno de vigia (e
interrompendo meu sono que me deixaria suficientemente descansado para lutar
melhor) e outros problemas e obstáculos desagradáveis (e deselegantes) da vida
de aventureiro, apesar de tudo isso, eu gostava do que fazia. Ou pelo menos
achava que gostava.
Entretanto, essa ponderação de
Drake (que eu não respondi, é claro) me fez pensar diferente pela primeira vez
desde que saí de Valkaria através do livro mágico. Talvez fosse a proximidade
de casa, talvez fosse a saudade a mola motivadora dos meus pensamentos e
emoções daquele momento. Eu pensei que talvez fosse a hora de chegar em casa,
rever meus amigos, meus pais, minha irmã, meus primos, tios e as tantas mulheres
da minha vida (senti saudades de cada uma delas, seja a elfa Julyana, seja a
barda Marina, seja a protótipo de aventureiro Camille, seja a bibliotecária
Lucy, seja a professora Isabel, seja aquela pistoleira misteriosa) e ficar.
Sim, aposentar a katana e me tornar professor. Jamais seria um miliciano, pois minha
opinião sobre soldados é deveras crítica (quem quer ser pau mandado e lutar de
forma estoica e sem graça?). Provável que pudesse virar um professor da
Universidade Imperial pelo dia e um vigilante pela noite. De qualquer forma,
divaguei, fantasiei bastante quanto a isso.
No final do dia, encontramos um
pequeno posto comercial que não chegava a ser uma aldeia. Era uma taverna com
quartos e estábulo para viajantes passarem a noite. Passamos a noite ali,
comemos e bebemos (eu não tinha clima, a ansiedade me consumia até para me
divertir) e dormimos. Mas nesta noite foi uma das vezes que mais meu coração me
doeu.
Tirando os meus pensamentos
egoístas de ficar em Valkaria, pensei em Blasco. Desde que ele abdicou de suas
memórias, Victor tem sido seu companheiro mais fiel que Layca à Elinia. Blasco
parecia uma criança. Não, pior que isso. Ele se maravilhava com tudo, sentia
medo de quase tudo também. Quando anoiteceu pela primeira vez depois do
incidente, ele ficou extremamente aflito e emocionado. Dava pra ver seu único
olhinho brilhando e suas pernas tremendo. Dava muita pena. Ele falava pouco, se
comunicava pouco. Victor tentava falar com ele sobre tudo, contava sobre as
vezes em que nós três, principalmente, nos divertimos. E qual foi minha
postura? A mais imbecil possível. Aos vinte e quatro anos eu ainda era um
garoto mimado e egoísta. Preferi me distanciar mais e mais de Blasco. Sequer
troquei uma palavra com ele. Eu notava olhares reprovadores de Victor. Eu não
tinha estômago para lidar com Blasco. Não que fosse um incômodo, longe disso.
Era simplesmente difícil lidar com aquela perda. Para mim, Blasco estava morto.
Aquele não era Blasco, era apenas seu corpo. E isso destruía minha alma. Toda
vez que ele falava, eu me calava e olhava para o lado. Sempre saia de perto
quando o assunto era sobre ele.
Partimos no dia seguinte, mas
não sem antes tomar um bom desjejum. Comi ovos e bacon como há muitas semanas
não fazia. Meu desjejum preferido naquele tempo. A cerveja que bebi para
empurrar não era das piores também. Com estômago forrado, olhos cegos para
Blasco e cabeça distante na estátua de Valkaria, partimos da taverna.
Antes de encontrarmos uma
encruzilhada na estrada, Nathaniel nos contou uma história. Um sonho terrível.
Minha memória me fez o favor de esquecer alguns detalhes perturbadores. O fato
era: envolvia escuridão, criaturas das trevas. Aparentemente, no nosso caminho
(sim, ele sonhou com todos nós), enfrentaríamos a escuridão. Porém, havia um
sol que nos acompanhava, nos iluminava o caminho no meio da noite. Não tinha
cara de sonho comum. Tinha toda pinta de ser um sonho profético. Missão divina,
sonhos divinos, Nathaniel era um clérigo de Wynna. Então, achamos por bem
considerar aquilo ao invés de ignorá-lo como se ele fosse um louco paranoico. A
teoria mais aceita foi que, como cada um dos Rubis da Virtude é ligado a um
deus, era provável que cada encontro com um deles tivesse uma “temática”
relacionada ao deus específico. Nesse caso, poderia ser Azgher. Ou Tenebra. Ou
qualquer coisa.
A encruzilhada. Sim, depois de
nos contar sobre seu sonho agourento, a estrada se dividia em duas. Um caminho
bastante usado e bem cuidado e outro quase nunca usado, com graminhas e ervas
nascendo por toda parte. Elinia e Layca investigaram o terreno e descobriram
que uma carroça pesada com carregamento pesado passou por ali não há muito
tempo. Era um caminho estranho. Porém, a gente ignoraria se não fosse pelo que
Nathaniel nos disse:
- Ali é o caminho que leva para
a ruína do internato. O verdadeiro. Não pelo lado que vocês foram.
Engoli seco.
- E daí? Nada tem a ver
conosco? – Eu disse rapidamente. Já estava temeroso.
- Tem tudo a ver. Temos que
averiguar o lugar. – Drake disse como uma ordem. Detestei aquilo e levantei da
carroça.
- Temos que ir para Valkaria.
- O objetivo não é chegar à
Valkaria, é encontrar os rubis.
A discussão havia apenas
começado. Eu tinha um repertório de réplicas e tréplicas. Poderia escrever um
tratado sobre isso. E, por fim, eu poderia dar minha cartada final questionando
a liderança de Drake. E, se nem isso desse certo, eu pularia fora da carroça e
racharia com o grupo. Para sempre. Valkaria estava ali, era só seguir e eles
não queriam. Meu desespero podia crescer exponencialmente. Bem como minha
capacidade de fazer besteiras.
Mas Elinia e Layca partiram à
frente ignorando todos nós. Dorks veio à minha mente no mesmo instante.
Porém, quando ela tentou se
transformar em uma loba como Layca, algo bizarro aconteceu. Não era um lobo
comum. Era uma mistura de pelos, pele, músculos à mostra. No seu dorso dava pra
ver seus órgãos internos. E ela não parecia notar. O grupo todo ficou abalado.
Gulsh sacou seu machado e ficou muito calado. Quando o orc gigante não solta
seus comentários sádicos, piadinhas sem graça e fora de hora, quer dizer que
está com medo. Blasco também ficou cheio de medo, escondendo-se atrás de
Victor. Não sabíamos o que fazer e nem o que esperar de Elinia. Entretanto, ela
voltou ao normal subitamente nos indagando o que havia acontecido. Depois de
explicarmos, ela ficou cabisbaixa e contou sobre um sonho que teve também. Mas
ligado aos lefeu, os malditos demônios da Tormenta. Para mim, aquilo era uma
expressão viva, um aviso dos deuses de que precisávamos chegar à Valkaria o
quanto antes para encontrarmos um especialista em Tormenta para cuidar daquela
corrupção.
Eu preparava meu contra-argumento,
mas um grito – mais um gemido – me interrompeu. Uma mulher se arrastava pela
estrada velha, cheia de feridas nos braços e pernas, além de sujeira pelo corpo,
com sangue seco colado no rosto. Quando ela nos viu, desfaleceu como que
aliviada. Elinia e Drake trataram de curá-la.
Sua história era comovente. Uma
simples camponesa capturada por homens malignos e servida como ALIMENTOS para
cachorros. Ela não entendia o que acontecia, nem por que faziam isso. Ela
lamentou a morte de seu pai e de seus irmãos. Eu rangi os dentes ouvindo seu
relato terrível. Desnecessário dizer que o herói dentro de mim explodiu pelo
meu peito.
- Você será vingada. Não se
preocupe. Quem fez isso contigo pagará com a vida. – Eu disse cheio de ódio.
Ela vinha do caminho das ruínas
do internado. Ou seja, Drake vencera aquela pequena disputa. Eu mesmo não
queria ir mais para Valkaria antes de matar os crápulas. Enchi meu peito de
coragem e estava preparado para tudo. Aparentemente era um acampamento de gente
ruim, talvez mercenários capturando pessoas como escravas para vender em lugares
igualmente malignos. Se havia algo que me tirava (e me tira ainda) do sério, é
a supressão da liberdade alheia. Algo mais hediondo que a morte, para mim.
Escravidão é pior que a morte.
Então, nos preparamos para
seguir o caminho do internato na velha estrada carcomida pelas ervas daninhas.
Mas uma querela surgiu. O que fazer com a camponesa?
- Deixe a vagabunda aí e vamos
logo. – Gulsh falou.
- Ela não é nenhuma vagabunda. –
Eu disse. Gulsh me ignorou dando de ombros.
- Vamos levá-la conosco, pois
não é uma boa ideia voltarmos para aquela taverna de estrada. – Drake sugeriu.
- É loucura a fazermos voltar
para o lugar que lutou tanto para fugir. – Eu disse. – Mas sempre podemos
perguntar a ela o que quer.
- Não, não quero voltar. – Ela disse
com olhos esbugalhados e chorando em seguida. Ela provava meu ponto. Podia ter
perdido a pequena disputa para onde íamos, mas aquela querela eu ia ganhar certamente.
- Você tem ideia melhor? –
Drake perguntou.
- Sim. Um de nós, que não seja
o Blasco, pode voltar com ela para a taverna. Não sei quem faria isso, pois
todos nós somos necessários nessa contenda. – Respondi. A verdade era que eu
não sabia muito bem o rumo a tomar.
- Eu a ajudarei. – Disse Nathaniel.
Em seguida, ele retirou seus
pertences de sua carroça (eu o ajudei) e deu seus dois belos cavalos para
levá-la de volta para a taverna. Ele deu uma moeda de ouro e eu dei um saquinho
com uns quinze tibares de ouro dentro. Ela poderia voltar e recomeçar a vida de
alguma forma. Era o mais humano a se fazer.
Voltamos para a estrada.
Seguimos nosso caminho. Foi tão longo que o dia começou a ir embora. Porém,
escureceu rápido demais. Havia, literalmente, uma área escura como a alta
noite. Ali, Azgher não tinha vez. Nosso destino, uma verdadeira ruina do que
poderia ter sido uma escola, um internato de fato, estava envolto a trovões e
tempestades. O lugar era tenebroso e, obviamente, perigoso. Conjurei a Armadura
Arcana (que tinha uma durabilidade maior que o escudo mágico) e me preparei.
Ouvimos, subitamente, uivos. Saquei a katana rapidamente e me preparei, olhando
para todos os lados.
Do chão, como se chamados pela
própria deusa das trevas, cães malditos surgiram com rosnados e uivos
sinistros. Tinha quase um metro de altura e sua pelagem era de um negro
profundo como a noite sem lua.
Saltamos da carroça para o
combate. Antes, entretanto, eu conjurei o Escudo Arcano. A combinação dos meus
dotes físicos e mágicos me garantiu uma boa proteção. A luta não foi demorada.
Quatro cães sombrios, lutamos bem. Layca, entretanto, sofreu bastante. Apanhou
com veemência e quase morreu. Desse lado da carroça, eu e Elinia ficávamos em
dois cães. Castiel tocava sua ocarina para nos inspirar. Dessa vez foi uma
música agitada, um épico heroico. Realmente nos inspirava. Pelo menos a mim. Eu
adorava lutar sob sua trilha sonora.
Do outro lado, Gulsh e Drake se
ocupavam dos outros monstros. Blasco chegou a ser agarrado, coitado e quase foi
devorado. Victor o ajudou e conseguiu libertá-lo. Depois, juntou-se a Gulsh e
Drake. Nathaniel ficou sobre a carroça, o que era esperado, e conjurou seus
mísseis mágicos. Eu fiquei cheio de vontade de conjurar também para medir qual
era o mais poderoso, mas não tive oportunidade. Minha técnica com a katana era
mais eficiente que minha magia, certamente.
Matamos alguns, mas no fim,
eles fugiram. Porém, ouvimos uivos, assovios. Criaturas uivando, eu imaginei
serem outros cães malditos. Mas assovios? Talvez fossem os homens
escravagistas. Ou talvez fossem algo pior...
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