Kalag
21, Weez, 1410 CE.
A visão da estátua de Valkaria
encheu meus olhos de lágrimas. Naqueles dias de aventuras, caminhadas por
florestas densas, bosques, masmorras, montanhas, rios, mares, eu achava que
nunca mais veria Valkaria. Mesmo que o grupo todo tivesse se inclinado a
visitar a maior cidade do mundo conhecido para tentar resolver o problema da
corrupção de Elinia, eu não acreditava que conseguiríamos. Sempre achei que
fosse morrer e ser largado para lá. Afinal, eu não tinha os favores dos deuses
e tão pouco tinha tanta fé na missão como Elinia e Drake.
Nunca fui afetado por esse
sentimento de saudade. Em meus relacionamentos na adolescência, com meus pais,
perante a cidade. Claro, sempre vivi em Valkaria e tinha ao meu alcance todas
as coisas e todas as pessoas que mais me importavam. Mesmo viajando em
Sckharshantallas e, depois, em Lamnor, não sentia as dores da saudade. Acho que
comecei a pensar na minha cidade e na minha antiga vida despreocupada quando a
possibilidade do grupo seguir o caminho dela se tornou real. Se sentir saudade
não era uma das minhas características, o mesmo não podia dizer da ansiedade.
Eu era super ansioso, de não conseguir ficar parado por muito tempo (desde que
não estivesse morto ou muito ferido, claro). Meu estilo de luta se baseia em
movimento. Mesmo sentado em enfadonhas mesas de almoços de valag em família eu
não conseguia manter minhas pernas quietas.
Voltando um pouco.
Estávamos em uma ruína de uma
antiga escola de magia em Wynlla, o Reino da Magia, governado por um conselho
de magos, onde a arte arcana era banal e comum. Foi lá também que adquiri meu
cinto de força, um item mágico bastante útil que servia para – sem surpresas –
aumentar minha força. Eu me sentia tão forte quanto o gigante do grupo, o orc Gulsh.
De qualquer maneira, fomos resolver uma missão para uma maga em troca da ajuda
que ela nos deu para sairmos da porcaria de uma prisão, onde fomos colocados
aleatoriamente por um capricho aventuresco de Valkaria, a deusa, não a cidade.
Para nossa surpresa, as tais
ruínas da escola de magia fora corrompida pela Tormenta, os malditos lefeus.
Por isso, enfrentamos mortos-vivos que cuspiam vermes lefeu para nos
contaminar. E depois enfrentamos o que parecia ser um golem – criatura artificial
criada por magos – embutido de matéria vermelha. Lefeu. Tudo lefeu. Era impossível
derrotá-lo, então fugimos e adentramos mais afundo nas ruínas da escola até
encontramos algo diferente. Queríamos desesperadamente encontrar a tal gema que
a maga benfeitora nos pediu para levar a ela. E acabamos encontrando algo pior.
Muito pior.
Eram monstros pequenos, magros
e muito feios. De relance, quase pareciam crianças horrivelmente deformadas e
subnutridas, mas um olhar direto nos revelou seu couro amarelado, quatro
olhinhos inquietos, o buraco no lugar do nariz e a boca imensa, cheia de dentes
grossos e afiados. Protuberâncias ósseas brotavam em lugares desencontrados, e
as criaturinhas cobriam-se apenas de aventais de couro. Seu comportamento era
frenético e enervante. Gargalhavam o tempo todo, saltavam e davam piruetas,
machucavam a si mesmos ou uns aos outros quando ficavam nervosos ou empolgados.
Eles queriam negociar. Não
conseguia entender o que eles eram, mas pareciam mesmo demônios. Do tipo das
canções e histórias, aqueles que prometem vantagens em troca de sua alma.
Certamente, criaturas malignas. Drake nem precisava nos dizer isso. Eles
ofereceram a gema que procurávamos. Ou qualquer outra coisa em troca de
conceitos. Alegria, paz, futuro, essas coisas abstratas.
Como é natural do nosso grupo,
eu senti que alguém ia fazer alguma bobagem. Só que dessa vez, a bobagem
poderia ser pior que a morte. Dessa vez foi Blasco quem tomou a frente e disse
que trocaria suas memórias pela gema. A troca foi aceita antes que pudéssemos interromper.
Se pudesse, eu teria cortado a cabeça de cada um daqueles demoniozinhos, mas me
resignei a gritar um longo “não”.
Desmemoriado, duvido que Blasco
soubesse que era um halfling. Alguns poderiam dizer que houve um lado positivo,
pois também saímos com um incrível Rubi da Virtude, finalmente. O sacrifício
desses dias de viagem em busca de pistas erradas com três mortes, dois
desaparecimentos misteriosos e uma possível expulsão de uma Ordem foram apenas enterrados
com a perda da memória de nosso companheiro. Pra mim, nada do que fizemos fez
sentido na medida em que Blasco perdeu suas memórias. Mas saímos com um Rubi. O
primeiro. Faltavam dezenove. Ou vinte. Desnecessário pontuar meus pensamentos. “Não
valeu a pena”. Não importava o que os deuses bondosos diziam. Não era isso que
eu considerava uma vitória.
Voltamos à capital de Wynlla,
Sophand, onde entregamos a maldita gema para a maldita maga. Acabamos forçando
ganhar mais informações, afinal, nós havíamos praticamente perdido um amigo. Eu
havia perdido um amigo. E eu culpava o grupo. Aquele bando de lobos solitários,
baratas tontas atrás de Rubis da Virtude havia roubado uma das poucas coisas
positivas que eu considerava naqueles dias.
Enfim, depois de um ritual
feito pela guilda que nos contratou através dessa maldita maga, descobrimos que
Patrick estava bem e em um palácio. Provavelmente em Pondsmânia, o Reino das
Fadas. Ele era uma fada e se estava em um palácio e não em uma masmorra
aprisionado, acreditamos que ele estava bem. Teve um destino muito melhor que o
nosso.
Ainda através do ritual bizarro
em que víamos as imagens através de um círculo mágico, descobrimos que Harel
(lembram dele?) estava sozinho, perdido, andando por aí em uma estrada
desconhecida. Parecia também não se importar onde estava, com quem estava ou
por que estava. Então, nós também não nos importamos muito com ele.
As informações mais úteis
acabaram sendo sobre Castiel. O desmemoriado elfo (juro que eu esquecia esse
detalhe com frequência) teve uma amostra de seu secular passado. Ele nasceu no
ano 1.100 em Lamnor, filho da casa da Folha Voadora. E seu nome verdadeiro era Lanbaelsolaithque
e ele teve um treinamento bárdico na guilda Quisather, a guilda da canção
celeste. Ele também teve treinamento militar onde participou ativamente na
Infinita Guerra (aquela que durou quase 400 anos e terminou com a derrota dos
elfos frente a Aliança Negra). Aparentemente, Castiel, ou melhor, Lanbaelsolaithque,
treinou por dez anos para sua ordenação e virar cavaleiro. E aí cessaram as
imagens das lembranças dele. Por fim, ele viu o rosto de Glorienn. Havia,
obviamente, mais mistério escondido aí.
“E quanto a Nathaniel?”,
poder-se-ia perguntar.
O nosso velho mago e clérigo da
deusa da magia foi expulso de forma bastante humilhante (imagino) e banido em
vergonha para sempre de Sophand. Esse aí não vende nem tinta de pergaminho
nunca mais. Seu nome está sujo e manchado para sempre na comunidade dos magos.
Mas, pelo que entendi nada tem a ver com a religião, pois ele mantém o favor de
Wynna. E, pelo que vi de sua cara, ele parece ter se agarrado a isso. Afinal,
foi tudo que restou. Nathaniel perdeu até suas posses, como casa, sem nada.
Soubemos disso tudo ao vê-lo no
portal oeste de Sophand (sim, íamos embora sem ele, naturalmente). Ele estava
um pouco cabisbaixo e nos contou sua sina.
Foi assim que partimos de
Sophand para Valkaria, continuar nosso caminho. A ideia principal era procurar
Reynard (sempre considerei uma ideia pra lá de absurda, afinal, ele é um mago
estudioso bastante ocupado) para tentar “curar” Elinia de sua corruptela. Foi
assim que comecei a sorrir mais, foi assim que comecei a sentir, de fato,
saudades de minha cidade, da minha terra e de meus pais.
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