Tirag 28, Dantal,
1410 CE.
Hoje foi um dia marcante.
Talvez um dos dias mais importantes da minha vida. Um evento tão poderoso, tão
majestoso, tão incomparável, tão único, que fica difícil imaginar algo
comparável. Ouso, inclusive, anunciar ao caro leitor que, até agora, estas
páginas foram escritas como um reles um prefácio para o grande dia 28 do sexto
mês de 1410, calendário élfico.
Infelizmente, como o leitor
deve ter percebido, mesmo os momentos cruciais, importantes, dignos de grande
nota, são geralmente ligados à tragédias, dramas ou infortúnios. Pelo menos no
começo dessa minha trajetória como herói aventureiro. O dia 28, portanto, não
foge a essa regra. Este foi um dia de luto, um dia de assistir uma grande e
terrível maravilha aos meus olhos e aos de Nathaniel, Patrick e Victor.
Pergunto a você, leitor.
Quantos artonianos podem dizer que viram um deus em pessoa?
Tudo começou ao dia seguinte à
batalha em que colocamos para correr uma guarnição de soldados de
Sckharshantallas, juntamente com o mercenário, caçador de recompensas e
pistoleiro (como se não bastasse sua infâmia). Depois de curarmos nossos
ferimentos nas águas mágicas do Lago Allinthonarid, dividimos os espólios
deixados pelos soldados que morreram. Três ao todo. Foi decidido que
carregaríamos as armaduras, escudos e espadas, além de seu ouro e uma mochila
com vários apetrechos úteis para um viajante. Ninguém quis usar as armaduras,
um par de cotas de malha e um camisão feito também de malha, com anéis
metálicos. Eu mesmo, que não usava armadura, rejeitei a ideia. O pobre Blasco,
que fazia dias estava lutando sem nenhuma proteção, não teve sorte de encontrar
um soldado halfling para lhe servir o tamanho.
Como eu estava em situação
precária, o mais mendigo do grupo, peguei uma camisa simples, de viajante,
feito de pano meio amarronzado. Tinha manga cumprida e era meio grossa, pois
servia de proteção para a armadura de cota de malhas que o falecido usava.
Testei os três pares de botas e apenas um par me serviu, mas foi o suficiente
para me deixar muito feliz. Com um sorriso amplo, animado pela possibilidade de
ser mais uma vez civilizado, peguei uma espada longa com bainha e amarrei na
cintura. Agora eu era um espadachim novamente. Não era a espada que eu possuía
mais familiaridade, mas dava para o gasto, com sua lâmina de quase um metro.
Com a ajuda do lago que
espelhava meu rosto e da tesoura que Nathaniel possuía, graças a seu kit de
primeiros socorros, pude cortar o excesso de cabelo e aparar a barba. Depois,
com a lâmina da espada curta que eu ainda tinha, terminei de raspar lugares
onde alguns tufos de barba faziam falhas, buracos no meu rosto. Olhei novamente
o lago como espelho e sorri satisfeito. Não era um trabalho de um barbeiro
profissional de Valkaria, mas dava para o gasto. Eu deixava de ser um bárbaro
raquítico e aproximava-me do que eu era antes.
Tudo pronto, o grupo decidiu
que ficaria mais um dia acampado. Porém, Patrick veio com uma ideia muito
insana.
- Eu vou procurar as fadas por
aqui. Mas com um pequeno grupo.
Loucura total. Fui contra.
Drake e Nathaniel também foram. Sensatos. Elinia, entretanto, foi a favor.
Fiquei surpreso com isso. Claro, os dois possuíam idades semelhantes, podiam
pensar de forma impulsiva, mas considerava a druida uma sábia, tal como nosso
clérigo de Wynna. Victor e Harel pouco dão opiniões quando envolve uma decisão
séria para se tomar pelo grupo todo. O elfo era meio carrancudo e calado, já
com Victor tenho certeza que sua humildade o impedia de participar tão
ativamente assim.
No fim, decidimos mesmo acampar
e tentar buscar os pais de Patrick pela manhã. Afinal, a noite naquela floresta
que cercava o Lago Allinthonarid era deveras perigosa. A primeira guarda ficou
com Victor e mal comecei a me acostumar com a ideia de dormir num maravilhoso
saco de dormir de um moribundo, fui acordado. Resmunguei um pouco, sentindo meu
terrível hálito e com a voz rouca. Olhei em volta e notei ausências marcantes. O
ruivo dos cabelos de Patrick era bastante notável e se destacava dos demais.
Por isso, sua ausência foi gritante. Notei a falta de Dorks e Elinia também.
Mas a estes dois, não senti necessidade de conferir nenhuma preocupação.
- Onde está Patrick? –
Perguntei a um sonolento Victor. Apesar de ter olheiras de cansaço, seus olhos
estavam bem abertos. Notei também um tom de mau humor.
- Eu tentei impedi-los, mas não
consegui. Patrick saiu naquela direção, em busca dos pais.
Resmunguei e só uns momentos
depois eu percebi que ele falou no plural.
- Como assim? Onde estão Dorks
e Elinia? Foram com Patrick?
- Não. Dorks eu não sei, mas
Elinia virou aquela árvore ali. – apontou para uma com galhos finos, bastante
folhagem (todas as árvores são iguais ao meu olhar leigo). – Ela tem poderes diferentes...
é uma meio-dríade.
Fiquei chocado.
- Meio-dríade? Como Lisandra? –
Todos em Valkaria conheciam a épica história de Lisandra, Sandro, Niele e Tork,
conhecida como Holy Avenger. Aconteceu há dez anos, que culminou na morte do
Paladino de Arton, um antigo herói do mundo, corrompido para sempre pelo enorme
poder que tinha.
Elinia não parava de me
surpreender. Olhei para a árvore que era ela e dei um sorriso. Imaginei que ela
gostaria de descansar, então, voltei minhas atenções para Patrick. O rapazinho
é teimoso mesmo. Alguns poderiam ver aquilo como coragem. Mas é difícil definir
a tênue linha entre bravura e loucura. Eu dei de ombros e fiquei sentado com
minha novíssima espada longo em mãos. Ponderei acerca do pondsmaniano. Não fui
atrás dele, não alertei ninguém. Será que eu não me importava com aquele
branquelo?
Não era isso. Algo me dizia que
tinha que ser assim. Sozinho. As fadas são seres mágicos com grande afinidade
com a natureza. Mas também são ariscas. Não se arriscariam em aparecer para um
bando de nove pessoas armadas. Aguardei longamente as horas da noite, até que a
neblina da noite anterior começou a engolir o lago e a floresta. Em poucos
momentos, estávamos todos encobertos naquela umidade surda. Antes de perder a
visão de tudo, notei que Victor não havia dormido. Alguma coisa o incomodava.
Percebi que era inútil fazer
guarda. Tentei acordar Harel para ele assumir meu lugar, afinal, elfos dormem
metade do tempo necessário para se sentirem bem. Mas, pelo visto, não era hora
ainda dele. O elfo resmungou algo inaudível e voltou a dormir. Sentei sobre meu
novíssimo saco de dormir e decidi que dormiria. No começo, tentei lutar um
pouco contra o sono, mas não fui muito resistente.
Acordei no dia seguinte e nada
de Patrick retornar. Vi Elinia voltando a ser Elinia e Dorks aparentemente
havia dormido atrás dela. Preparamos um desjejum com a caça do troglodita e a
pesca de Victor. Drake, entretanto, ao saber da falta de Patrick, decidiu procura-lo
imediatamente.
- Os sacerdotes não rezaram
ainda... – alguém falou, acho que Blasco. Mas Drake estava surdo à sensatez.
Andou no meio da floresta sozinho em busca do feiticeiro pondsmaniano. Eu dei
de ombros.
- Quando Elinia e Nathaniel
terminarem suas orações, vamos tentar achá-lo primeiro, antes que seja muito
tarde. – Disse, enquanto comia um biscoito seco da provisão da minha novíssima
mochila. Sim, havia sete dias de ração de viagem. O ex-soldado e atual cadáver
havia me cedido bons equipamentos.
Depois da hora necessária para
os devotos dos deuses restabelecerem seu contato com suas divindades,
levantamos acampamento. Elinia tomou a frente do grupo com Dorks e partimos em
busca de Patrick. E Drake.
Depois de passar muitas horas
contornando o imenso lago, pude perceber o seu real tamanho. Anteriormente, víamos
a outra margem em tamanho diminuto, um terço do nosso dedo mindinho. Mas agora
eu tinha certeza que aquele lago mágico podia ter o tamanho da cidade de Valkaria.
Fiquei bastante impressionado. Meu humor, inclusive, estava destoante naquele
dia. Eu tinha sorrisos para todos, estava feliz com minha barba aparada e
cabelos cortados. Além de vestir uma roupa e botas. E, claro, a espada longa na
cintura. Conversei animado com Nathaniel e Blasco. E às vezes com Victor.
Desencanei totalmente de Elinia. Estava distante demais de mim. Dorks, então,
nem se fala. Não lhe dirigi uma palavra.
Depois de muito procurar,
encontramos Patrick às margens do lago, dormindo encostado numa árvore.
Aparentemente, ele não dormiu a madrugada inteira. Teria encontrado as tais
fadas? Essa pergunta foi respondida por um bocejante feiticeiro.
Ficamos sabendo que ele havia
perdido os pais em uma barganha com fadas. Estas, malignas, não foram justas a
meu ver, pois Patrick não sabia o que estava apostando antes de perder. Aparentemente,
ele também tinha algumas outras respostas. Mas pareciam ser um assunto pessoal,
portanto, ninguém perguntou mais profundamente.
Então, Elinia decidiu buscar
Drake e o encontrou facilmente.
Ali, à beira do lago com um
Patrick dorminhoco, precisando descansar para recuperar seus poderes mágicos, o
grupo tomou decisões fortes que culminaram no fatídico dia 28 de Dantal de
1410, um dia que jamais esquecerei.
Começou com uma votação, puxada
por Nathaniel e apoiada por mim. Tínhamos duas alternativas. Uma muito clara e
uma enevoada. Drake, Elinia e Patrick entendiam que deveríamos seguir a
interpretação que eles tiveram sobre as imagens mágicas do elemental de fogo,
há uns dois, três dias. Ou mais. Segundo os três, deveríamos voltar para os
domínios do reino de Sckharshantallas e buscar alguma mina de Thenarallan,
onde, supostamente, estaria aquela pedra esquisita que aventureiros pegaram. Eu
quase havia esquecido essa visão e desse estranhíssimo encontro.
Por outro lado, eu achava que
deveríamos seguir o caminho oposto, ou seja, seguir a direção para onde o elemental
foi depois de nos mostrar sua visão profética e dúbia. Outros argumentaram que
isto era buscar o vazio, o desconhecido. E, no fundo, era mesmo. Estava muito
reticente em voltar para perto de Thenarallan.
- Você apenas não quer voltar
para lá, onde foi preso. – Disse Elinia, me acusando de medo. Não deixava de
ser verdade.
- Vamos votar. – Eu disse e
consegui convencer a todos. Na minha cabeça, Nathaniel e Blasco estavam do meu
lado. Voltar para um lugar onde éramos caçados não parecia ser esperto. Porém,
Drake apelou para a religiosidade. Falou em destino, missão sagrada dos deuses
que olham por nós. Patrick concordou, Elinia mais ainda. Nathaniel não teve
escolha a não ser tornar-se convencido. Blasco tinha uma predileção por Thyatis
também, pois foi graças a ele que o pequeno conseguiu fugir de seu reino natal,
Hershey, antes da invasão táurica.
Lamentável. Victor e Harel
acabaram por ir com a maioria. Fui o único a votar contrário. Drake até zombou
da votação que eu mesmo apoiei. A minha vontade era de dizer em sua cara que
pelo menos eu acataria a decisão da votação, o contrário dele. Certamente este
cego de devoção por um deus que o abandonou não aceitaria outra decisão e até
partiria sozinho rumo às minas próximas de Thenarallan. Fiquei com extrema
raiva, mas mantive minha postura. Se eu falasse isso, certamente ouviria mais
coisas nada agradáveis e puxaria minha espada. Não terminaria bem, independente
do resultado de um possível combate.
Mas tomei para mim a decisão de
ser um peso morto para o grupo. Se antes eu era pelas faltas de condições
materiais, agora eu seria deliberadamente. Ajudaria os poucos que eu gostava
naquele bando, Blasco, Victor, Nathaniel e até Harel. Elinia e Dorks jamais
precisaram de minha ajuda e jamais precisarão. Drake e Patrick podem espernear por
ajuda, mas eu agiria de má vontade.
Pelo menos foi o que pensei na
hora. Foram precisas apenas poucas horas para mudar de ideia. De cabeça mais
fria, eu confrontei comigo mesmo e, depois com Nathaniel, a necessidade de
nosso rumo. De fato, eu preferia seguir o caminho oposto por medo de voltar a
um lugar onde sou um criminoso caçado. Se até aquele momento não éramos heróis aventureiros,
apenas presas fáceis fugitivas, fugir para o outro lado também não seria nada heroico.
O que meu mentor Satoshi Yamada pensaria disso? O que meu pai faria?
Houvesse uma chance de retornar
à cidade de Thenarallan, eu haveria de ter uma chance de reaver a katana,
presente de meu pai, feita pelo próprio Satoshi. Porém, a possibilidade de
retornar a esta cidade era mínima. E de começar a procurar minha katana, menor
ainda.
Precisávamos de um abrigo para
continuar a viagem. Elinia saiu em busca de um local seguro para descansarmos e
Dorks partiu em busca de comida. Embora eu tivesse rações de viagem, todos nós achamos
melhor economizar enquanto tínhamos uma floresta farta em presas para nos
alimentar. Não muito depois, a meio-dríade voltou dizendo ter encontrado algo,
mas que precisava investigar melhor. Perguntando quem poderia ajudá-la, decidi
ali começar minha pequena vingancinha. Um egoísmo barato, tolo.
Drake, o ex-paladino, não podia
deixar de mostrar como era solícito e determinado e se ofereceu a ir. Harel e
Blasco também foram. Desse modo, o grupo teve sua divisão fatídica. Coincidentemente
(ou não!), a separação teve critérios raciais. Os humanos ficaram à beira do
lago, aguardando a volta de Dorks e os não-humanos partiram para investigar
melhor o abrigo.
Foi nesse tempo que conversei
com Nathaniel sobre os deuses estarem movendo suas peças, nos influenciando.
Para a maioria dos artonianos, isso era bom. Para mim, significava falta de
liberdade. E eu não podia deixar de reclamar de minha sorte.
- Isso tem dedo de Nimb.
Valkaria ficou maluca por influência de Nimb. Maldita hora que li o maldito
livro mágico.
- Que livro? – Perguntou Nathaniel.
Apesar dos vários dias de convivência e conversas, percebemos que pouco sabemos
uns dos outros. Apenas sei que ele estudou magia em Wynlla, o reino da magia e,
depois, concluiu seus estudos em Valkaria, na famosa Academia Arcana, onde
minha mãe também se formou maga, vários anos atrás.
- Um livro mágico e misterioso.
Nunca havia visto lá em casa. Tinha palavras dracônicas brilhando. Eu li por
que... bem, não sei. Sei que li e fui teletransportado para Sckharshantallas.
- De qualquer forma, você deve
ter mais respeito para os deuses, jovem Aldred. É um privilégio seguirmos seu
caminho. É um privilégio ser digno de sua atenção.
Resmunguei qualquer coisa. Ele
tinha razão, eu sabia. Mas era difícil admitir. Preferi ficar calado, descalço,
sentado à beira do lago. Vi Victor pescar ao longe, quase cochilando sentado em
frente à sua vara. Patrick dormira depois da votação, pois estava ainda muito
cansado. Eu mesmo comecei a me entediar. Eu devia praticar um pouco com a
espada longa. Mas acabei cochilando.
Acordei e o sol já estava
sumindo. Dorks havia aparecido e estava tirando a pele de um animal grande
qualquer. Mas o resto do grupo não havia voltado. Fiquei preocupado. Nathaniel
estava estranhamente calmo. Victor estava dormindo, de fato. Tentei me
comunicar com Dorks sobre o paradeiro de Elinia, mas sem sucesso. Ele estava
absorto na sua tarefa. Aos poucos, Nathaniel também percebeu que se passaram
muito tempo da saída de Elinia e os outros. Patrick acordava naquele momento
com um longo bocejo.
- Eles não voltaram ainda. Isso
é estranho. – Eu disse.
Como que se ele me entendesse,
Dorks começou a ficar agitado. Movia-se rapidamente como um cachorro perdido.
Ele sentia falta de Elinia também. Subitamente, decidiu correr pela floresta.
Eu tentei segui-lo, mas Victor me alertou que estava indo sozinho. Nathaniel disse
que não sairia enquanto Patrick não pudesse recuperar seu descanso totalmente.
Mesmo acordado, o pondsmaniano ainda precisava de mais um momento. Cerrei os
dentes e desisti de correr com Dorks. A chance de nos perdemos era enorme.
Voltei e sentei no chão irritado.
Não demorou muito, o troglodita
voltou correndo em nossa direção. Ele parou, súbito, em nossa frente e fez um
gesto com as mãos. Com a mão esquerda, ele simulou o chão. Depois simulou duas
pernas com seus dedos da mão direita. Em seguida, foi para o lago. Primeiro,
correndo, depois, nadando. Eu ergui as sobrancelhas, surpreso. Nathaniel deu de
ombros.
Olhei para a direção de onde
ele viera correndo e vi uma fumaça.
- Onde há fumaça... – eu comecei
a dizer até ouvir um farfalhar de asas de couro.
Meu coração gelou.
Claro, as chances de ser um dragão
eram remotas. Primeiro por que aquele lugar era território sagrado de
Allihanna. Segundo Elinia, o local mais sagrado que eu provavelmente pisaria na
minha vida. Segundo porque Sckhar não deixava que outros dragões vivessem ou
mesmo passassem por seu reino. Territorialista ao extremo, o rei dos dragões
vermelhos e rei de Sckharshantallas não permitia competição, por mais ridícula
que fosse. Duvido que deixasse até mesmo um ovo de dragão passar por seu
território.
Mas algo no fundo da minha alma
dizia que aquilo era um dragão. As asas de couro lutando contra o vento para
ganhar altura era muito característico. Inconfundível. Corremos para o lago a
exemplo do troglodita e ficamos lá. Tive tempo de uma frivolidade: por minhas
botas amarradas em volta do pescoço.
Não demorou muito para ouvirmos
o que seria um sopro e um horrendo barulho de madeira crepitando. No nosso
horizonte, chamas começaram a varrer as árvores, chegando à borda do lago. Em
poucos segundos, toda a margem, de mais ou menos cinquenta quilômetros, estava
tomada por fogo.
Então, ele veio.
O deus.
Sckhar voou com suas majestosas
asas coriáceas abertas. Ele passou por nossas cabeças, projetando uma sombra
impossível. Ele ocupava o céu inteiro. Ainda bem que eu estava no lago, pois não
consegui conter minha bexiga. Ele cuspia e parecia uma erupção de u m vulcão.
Sckhar não era um monstro, não
era um ser vivo. Ele era um deus, o deus do fogo, eu acho. E por ser algo
imortal e inalcançável, minha mente não conseguia processar o horror que via.
Não pude reparar muito bem no rosto de Dorks, Nathaniel ou de Victor, mas tenho
certeza que não diferiam muito de mim. Olhos arregalados, boca aberta.
Paralisia pelo medo. Só nos movíamos porque precisávamos nos manter boiando.
Dorks achou um pequeno pedaço
de terra no meio do lago. Subindo nele, vi seus olhos ficarem vermelhos. Seu
rugido parecia de um filhotinho. Sua fúria parecia um choramingo de um bebê.
Havia um deus sobre nossas cabeças, cuspindo fogo por todos os lados.
A cena era risível e eu ri. Eu
estava louco pelo absurdo que estava acontecendo. Dorks ameaçava Sckhar com sua
machadinha, sua lança. Rugia de raiva. O medo é um sentimento muito poderoso e
Dorks usava de combustível para sua fúria naquele momento. Logo, sentimos uma
lufada quente de calor. Sckhar não parecia ter nos visto (graças a Valkaria!),
mas soprou chamas brancas, imortais, na beira onde estávamos acampados. O vento
quase nos cozinhou.
Em poucos minutos, toda a borda
da floresta, da imensa floresta sagrada de Allihanna estava em chamas.
Estávamos no verdadeiro inferno. A fumaça tomou todo o céu. Então, vimos a
bocarra de Sckhar se abrir. Dessa vez eu mergulhei, numa tentativa patética de
me salvar. Parecia uma boa ideia no momento. Só senti a água esquentar
rapidamente. Quando voltei à superfície, percebi que o nível do lago estava
menor, quase dava para por o pé no fundo. Apesar de não estarmos perto dos
lugares mais profundos, ali deveríamos estar há uns três ou quatro metros de
profundidade.
O deus estava evaporando o
lago. Aquilo era absurdo demais. Dorks mergulhou e passou por nós, alucinado.
Tomei um susto enorme, com medo dele avançar sobre nós para nos matar. Uma
bobagem sem tamanho. Ele foi até a beira da floresta! Uma parte onde não estava
em chamas. Ficou ali, ridículo, desafiando o deus. Dorks desafiou um deus!
- Dorks! Volte! Você está
louco! – E estava, certamente. O medo evoca a loucura. Sckhar estava incinerando
a floresta e nossa sanidade.
Victor também gritou por ele,
fez gestos. O rapaz pescador era mesmo duro na queda. Estava ali, gesticulando,
preocupado com o amigo. Já Nathaniel, estava mudo, pálido. Parecia que ia
desmaiar a qualquer momento.
Num gesto de loucura e
desespero, comecei a nadar até Dorks.
- Victor! Venha comigo! Eu sozinho
não posso trazer Dorks! – Gritei. Ele titubeou um pouco. E com razão. Mas veio
mesmo assim.
Porém, antes de chegarmos
sequer no meio do caminho, vimos o deus jogar sua sombra sobre nós. Boca
aberta, brilho branco. A luminosidade foi tanta, tão perto, que achei que fosse
ficar cego. O calor abafado me fez ficar com a pele toda vermelha instantemente.
Pude ver, com o olhar estreito, que Dorks desaparecia no meio daquele branco.
Sckhar atingiu Dorks com seu
sopro de fogo divino.
Essa frase, absurda em todos os
sentidos, ainda me causa desconforto ao escrevê-la. Estou inquieto, caro
leitor, mas é meu dever documentar este ocorrido. Ainda hoje meus olhos umedecem
ao lembrar este dia, 28 de Dantal de 1410. Dorks, um companheiro, ainda que
incomunicável por meios normais, estava morto. Acho que até sua alma foi
evaporada pelo calor do fogo divino.
Depois disso, chorei e nadei de
volta para perto de Nathaniel. Atônito, ele não tinha palavras. Sua sabedoria
se enclausurou em sua cabeça. Era uma prisão de medo. Eu estava louco, mas a
morte de Dorks me trouxe à dura realidade. Depois, percebemos (sentimos, na
verdade) que Sckhar havia ido embora. Nadamos até às margens e vimos uma
desolação completa. Havia muito preto. O chão enegrecido, carvão por todos os
lados, árvores (o que restou) negras. Mesmo a margem do lago era vidro.
Andamos lentamente, nos
sentindo péssimos. Sckhar não era um adversário, era um fenômeno imparável.
Ou não. A partir deste dia, eu
decidi não viver mais com medo de nada. Eu havia visto o poder destrutivo de um
deus e saí vivo.
Saímos vivos.
Andamos ainda desolados, mas eu
tinha em mente uma construção de objetivo. Precisava seguir um rumo para me
tornar um herói aventureiro que sempre quis ser. E, além de tudo, desenvolver
meu próprio poder dracônico, o sangue de dragão dourado que corria em minhas
veias. Duvido muito que fosse um dia páreo para Sckhar, mas certamente com
todos do grupo, juntos, poderíamos fazer alguma coisa.
Vimos uma vegetação começar a
surgir, do nada. Primeiramente, achei que alguma vida vegetal havia escapado da
fúria divina, mas logo percebi que era vida nova. E crescia muito rapidamente.
Em pouco tempo, podíamos ver um gramado surgindo, pequenos troncos de árvores
ocupando as enegrecidas e mortas.
Sorri, pensando que aquilo era
um sinal.
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