quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Diário de Aldred C. Maedoc III - Parte 6

Aztag 25, Dantal, 1410 CE.
Eu pensava já estar acostumado à miséria.
O que me fez ter esse raciocínio errôneo (afinal, não, eu não podia dizer isso, pois vivi praticamente todos os meus vinte e três anos até então no conforto), foram os recentes acontecimentos. Somente de calças decrépitas, sem botas, sujo o tempo todo e tendo atuações no combate cada vez mais pífias, eu considerava minha existência patética.
Entretanto, esse dia terminou de forma agradável, por incrível que pareça. Durante todo o tempo em que viajei por Sckharshantallas, tive saudades de minha Valkaria, com sua brisa fresca, com o cheiro de cidade e das pessoas. Até mesmo dos pequenos problemas que lidei quando era adolescente. Se antigamente eu considerava minhas peripécias coisas bastante relevantes, hoje vejo o quão inocente era. O mundo é muito mais vasto, hostil e terrível. Porém, este dia, o começo da semana, foi atípico, quando pude relaxar, soltar alguns risos que eu jurava ter esquecido como se fazia, além de tomar banho e limpar toda a sujeira e o cansaço acumulado pelos vários dias a seco, no calor insuportável.

Logo pela manhã, ao acordar, fomos agraciados pelo peixe cozido na fogueira que eu mesmo fiz. Graças à Vitor, nosso lutador de mãos vazias e pescador nas horas vagas. Não me recordo de que reino ele viera, mas sua habilidade com a pescaria surpreendeu a todos. Ele até carregava uma vara de pesca! Tentei aprender com ele alguns truques, mas apenas para saciar minha curiosidade em aprender coisas novas.
O que mais gostei de fazer neste dia foi a prática com a espada curta e a lança, durante um exercício físico com Blasco. Todas as nossas diferenças foram superadas, e eu passei a apreciar bastante o halfling caolho. Gosto de pensar que éramos amigos. No começo, praticávamos acrobacias, mergulhos, cambalhotas e outras movimentações. Eu mostrei bastante agilidade e sagacidade, pois eu fui bem treinado há alguns anos. Curiosamente, Blasco não era habilidoso nesse quesito, apesar de ser halfling. Fiquei contente por encontrar alguém que não atendesse as expectativas dos estereótipos comuns. Blasco era um guerreiro versado em técnicas de combate apuradas e na luta com duas armas. Era bastante diferente do halfling ágil, gatuno e oportunista que era de se esperar.
De qualquer maneira, após longos dias de caminhada, sempre temendo nosso perseguidor pistoleiro, pudemos enfim descansar no famigerado Lago Allinthonarid. O lago onde nossos esforços foram todos depositados, esperançosos de que conseguiríamos pistas para achar a família de Patrick. Na verdade, encontrar o lago passou a ser o objetivo e o fim em si. Pelo menos pra mim, que perdeu praticamente tudo, mas acho que para todos também. Encontrar este lugar custou-nos muito caro.
Neste quesito, queria destacar o lefou paladino de Thyatis Drake. Durante um conflito que tivemos, um ou dois dias atrás, contra homens-vegetais, nosso camarada acabou matando um deles sozinho. Para seu maior azar, estas criaturas eram inteligentes. Possuíam alguma capacidade de raciocínio, ainda que rudimentar. Por conta dessa ação, Drake perdeu seus poderes divinos, teve seu elo com Thyatis interrompido. Uma das principais obrigações e restrições dos clérigos, paladinos e outros devotos do deus da ressurreição é jamais matar um ser inteligente, privando-lhe da possibilidade de uma segunda chance. Um dos dogmas mais importantes de Thyatis era este: todos merecem uma segunda chance, todos os seres inteligentes, que são, teoricamente, capazes de tomar decisões. Por isso, ao matar o homem-vegetal que ameaçava a vida de Harel, o elfo arqueiro que se juntou a nós há alguns dias, Drake fora abandonado por seu deus.
Não quero entrar no mérito sobre a validade dos dogmas de um deus maior do Panteão, ainda mais se tratando de Thyatis, uma divindade bondosa. Mas eu teria feito a mesma coisa que Drake. Ao arriscar destruir um inimigo que estava prestes a matar um companheiro, Drake ganhou muito mais o meu respeito. Aliás, de todo mundo. Apesar do seu feito heroico, mesmo assim, Thyatis o abandonou. Isso me gera a pergunta: quem precisa de deuses assim? De qualquer modo, Drake não pareceu seguir esse caminho de raciocínio e decidiu isolar-se, ficar ainda mais carrancudo e sisudo. O lefou preferiu ficar longe de nós, evitando contato, evitando perguntas, conversas.
Mesmo os esforços de Nathaniel, nosso estimado clérigo da deusa da magia, para resgatá-lo da depressão foram em vão. Vitor e Elinia também tentaram conversar com ele, bem como Blasco. Eu não me sentia a vontade de falar com ele sobre isso, mas mesmo assim arrisquei algumas palavras de conforto e acabei descobrindo que ele pode sim restabelecer a confiança de seu deus. Bastava cumprir alguma penitência concedida por algum devoto de Thyatis. Porém, no meu coração, instalou-se um receio de que isso o atrapalhasse nas lutas. Até o presente momento, Drake tem sido um dos melhores combatentes entre nós, lutando com desenvoltura e eficiência com sua armadura de placas de metal como se fossem escamas, com seu escudo e com seu martelo ricamente trabalhado, de uma óbvia qualidade superior. Fiquei temeroso em pensar que sua depressão o fizesse lutar mal. Ou pior: não lutar.
Entretanto, no âmbito do combate, um ou dois dias atrás, na luta contra os homens-vegetais, eu considerei um bom combate. Minha atuação foi acima das outras anteriores (o que não era muito difícil). Não fui decisivo ou de eficiência máxima, pois estava lutando com uma lança e não com a katana, minha arma favorita pela qual treinei por muito tempo. Dessa vez, nosso grupo lutou mais coordenadamente. Não sei até que ponto a rudimentar inteligência dos dois homens-vegetais que nos enfrentaram contribuiu para nosso sucesso tático, mas o fato é que conseguimos uma boa vitória, depois de tantas fugas e humilhações frente a outros adversários e mesmo outras adversidades.
Falando em adversidades, caro leitor, eu farei aqui um breve parêntese sobre dois acontecimentos terríveis que afligiu nosso grupo. Antes de chegarmos ao famoso Lago Allinthonarid, antes de enfrentarmos os malditos homens-vegetais, andamos por uma região em inclinada, toda enlameada. Acredito que seja influência do lago que estava a um dia de viagem. E da chuva que nos agraciou por um tempo. O fato pitoresco, entretanto, é que durante a nossa descida pelo terreno enlameado, os maiores perigos eram as malditas “armadilhas naturais”.
Ao chegarmos nesse declive imundo, discutimos a possibilidade de andar em uma formação racional, evitando a preocupação de nos atolarmos em alguma poça de lama, ou areia movediça. Confesso que não sou muito conhecedor dos terrenos e climas, pois o conhecimento geográfico sempre me foi enfadonho. Mas mesmo assim, considerei que por portar uma lança, tal como Dorks, poderia me guiar como um cego se guiava, tateando o chão em busca dessas tais armadilhas.
Entretanto, por um acaso do destino, por uma tragédia anunciada, Elinia pisou numa poça de lama que aparentemente era inofensiva. Entretanto, escondia um grande e profundo buraco. Ela caiu e desapareceu em questão de segundos. Nosso grupo ficou agitado imediatamente. Todos os dotados de músculos, como eu, Drake, Vitor, Blasco (sim, até o nosso halfling caolho) e, claro, Dorks. O troglodita tinha um apreço enorme pela druida, como um fiel cão adestrado. Sem ofensas. Eu mesmo ainda mantinha algum sentimento para com ela. Mas dessa vez, não banquei o herói. Ou melhor, não tive tempo para isso. Usamos cordas, puxamos e não conseguimos sucesso. O ar comprimido, a lama que entrava pelo nariz e boca, encurtavam a vida da jovem druida, aproximando-a de seu fim.
Drake, então, se jogou na poça, sendo seguro pelas pernas por Dorks. Depois de um tempo se debatendo, ele balançou sua perna, avisando que era hora de ser puxado. Dorks usou toda sua força e pude ver as veias saltando-lhe os braços e no rosto. Nesse momento confirmei minha teoria de que o troglodita era o mais forte membro do grupo. Depois de tamanho esforço, ele conseguiu retirar Drake e Elinia da tragédia anunciada.
Toda suja, ela parecia ignorar sua condição lamentável. Aquele ar displicente que ignorava sua aparência rústica se provou mais atraente. Pelo menos para mim. Como o caro leitor deve ter reparado, eu havia despertado um certo interesse nessa jovem druida de dezesseis anos. Não seria a primeira vez que aconteceria algo do tipo, ter um interesse por uma mulher mais nova que eu. Mas a diferença de idade dessa vez era muito grande. Desse modo, eu me ludibriava que este era o único motivo que me impedia de tentar algum movimento mais ousado para cortejá-la. Enganava-me, é claro, pois no fundo eu sabia que jamais conseguiria despertar o interesse dela em mim. Ela era uma mulher selvagem, sem menor interesse nas coisas da cidade. E eu era o representante vivo da maior civilização do mundo conhecido, de Valkaria, Deheon.
Depois de termos superado tal imbróglio, continuamos o caminho mais cautelosamente. À frente, eu e Dorks com as lanças, pisando com cuidado e furando poças para medir sua profundidade. Amarrei Blasco à minha cintura com a corda de Drake. Ou de Vitor, jamais me lembrarei desses pequenos detalhes. A ideia era que se o halfling caolho pudesse se segurar em alguém forte se caísse em um buraco. Sim, considerei isso um elogio, mas sabia que sua primeira opção seria Dorks. Entretanto, a ideia de amarrar a cintura do troglodita que sequer conseguia compreender o que falávamos, o fez escolher sua segunda opção. Eu. Naquele momento, não sabia o porquê dessa decisão, pois Drake ou mesmo Vitor eram as escolhas mais óbvias. Entretanto, fui eu o escolhido. De fato, eu me considerava forte, havia desenvolvido músculos definidos ao longo do meu treinamento em Valkaria e mesmo durante o período em que estudei na Universidade Imperial, eu praticava com a espada e fazia exercícios regulares.
Porém, como nada neste mundo parecia nos dar alguma trégua, com Nimb fazendo questão de nos sacanear, eu pisei em falso e afundei num buraco. Fundo. Muito fundo. Desapareci imediatamente e ainda puxei Blasco comigo. Sem forças para se manter firme, ele foi tragado pelo meu peso.
Posso dizer que a sensação claustrofóbica foi apenas uma consequência do verdadeiro cerne do problema. Sem lugar para me mexer direito, sem apoio de referência, fiquei à mercê da lama que cobria todos os espaços. Segurando a respiração, pude evitar um pouco de respirar essas porcarias. Mas não consegui evitar engolir. Na escuridão total, não atrevi abrir meus olhos. Senti meus ouvidos se preencherem. Era desesperador. Fiquei por bastante tempo soterrado, tentando evitar o pior. Mas não durei muito, logo tive que respirar e meus pulmões ficaram preenchidos de lama. A consciência me abandonou novamente, uma sensação já muito íntima.
Só abri os olhos novamente quando estava deitado, recebendo milagres de cura de Nathaniel. Vi Dorks, Drake, Vitor e Elinia medindo mais de dois metros e isso me deixou muito confuso. Mas logo pus a cabeça pra pensar e nem precisei perguntar muito. Eles foram alvos de magias de aumentar pessoas, conjurada provavelmente por Patrick. Aparentemente, o garoto ruivo da Pondsmânia tinha desenvolvido um pouco mais seus poderes mágicos, depois de tanto praticá-lo nesses últimos dias.
Soube mais tarde, também, que fora preciso de muita gente para segurar a corda no qual eu estava amarrado. Salvaram Blasco primeiro e, depois, por pouco, não teriam conseguido me salvar também. Agradeço a eles por não terem desistido de mim. Minha dívida para com o grupo crescia. Meu pesar em ser apenas um estorvo também.
Seguimos adiante e, durante o acampamento que fizemos após sairmos da terra enlameada, fomos atacados por dois homens-vegetais. Harel, o arqueiro, possuía a melhor visão dentre nós, fazendo jus à fama dos elfos de possuírem uma grande capacidade perceptiva. Ele tentou lidar com um desses monstros primeiramente. Elinia tentou manter um diálogo, pois homens-vegetais pareciam ser crias óbvias de Allihanna, a deusa da natureza. Mas Patrick se assustou com a agressividade dos monstros e disparou dois feixes de luz brilhantes, projéteis bem poderosos, os tais mísseis mágicos. As criaturas, então, começaram o combate. Harel foi derrotado rapidamente e engolfado por gavinhas que surgiam do corpo deles. A partir daí, a luta era para evitar que este homem-vegetal fugisse com o elfo. Por isso, quando nos juntamos para derrotar um deles, Drake se distanciou de nós para enfrentar sozinho o outro adversário. Sabendo que a casca era dura e de grande vitalidade, o lefou paladino de Thyatis não se segurou e desferiu golpes mortais, depois de estar bem machucado devido à poderosas pancadas. Por isso, com a martelada, Drake matou o homem-vegetal e perdeu seus poderes divinos.
Minha atuação neste combate foi discreta, mas muito melhor do que das últimas vezes. Dessa vez eu estava medindo o dobro do meu tamanho, graças à magia de Patrick, minha lança (que agora media mais de três metros) estava embutida de poderes mágicos como fogo. Acreditava que, por serem feitos de vegetal, os adversários fossem mais vulneráveis ao fogo. Entretanto, Allihanna parece ter criado bem estes servos e os protegeu das mazelas das chamas. Logo, lutei somente com o poder mágico embutido por Nathaniel. Movimentei-me bem durante o combate, aproveitando meu enorme tamanho. Quando Elinia fez um dos adversários cair, todos puderam atacar mais à vontade. Por isso, vendo que não precisava mais atacá-lo, me desloquei para lutar contra o homem-vegetal que Drake enfrentava sozinho. Não consegui feri-lo, entretanto, e o paladino o derrotou com um único golpe, causando todo o problema já dito.
Nós chegamos ao final do outro dia no Lago Allinthonarid. Um lugar rodeado de floresta verdejante, chão de areia dura. Tomei banho, como há semanas não fazia e senti o poder revigorante das águas mágicas. O mito era verdadeiro. Uma pena que Drake estava relutante em ser curado seja pelos milagres divinos de Nathaniel ou de Elinia, ou do lago.
Enquanto eu nadava, sem preocupações, pensava na visão que nosso grupo teve durante o encontro com uma criatura muito exótica. Antes de encontrarmos os homens-vegetais, antes de andamos pelo terreno enlameado, durante nossa jornada na região árida, fomos interpelados por uma criatura humanoide formada apenas por chamas. Segundo alguns estudos que fiz sobre magia, pude perceber que era um elemental do fogo. Essas criaturas são de outros planos de existências, formado puramente por elementos, seja fogo, água, ar, terra, luz e trevas. Eles são criaturas inteligentes, capazes de tomar decisões. Não são monstros nem aberrações da natureza.
Recebemos a visita deste elemental do fogo enquanto dormíamos, logo depois do combate contra aquele dragão falso que triturou o que havia restado da minha camisa. De qualquer maneira, nós olhamos atônitos, a sua passagem. E, por algum motivo, ele mostrou-nos uma visão através de uma fumaça mística produzida sobre sua cabeça.
Era uma montanha alta e poderosa. Depois, a imagem se aproximou para dentro dela, aprofundou-se até o fundo, até um lugar que parecia ser uma masmorra ou uma mina. Havia algumas pessoas lá: um anão, uma elfa, um ou dois humanos, não tive certeza. A mulher pegava uma esfera do chão, que parecia uma gema valiosa.
A imagem acabou e o elemental seguiu seu rumo, partindo para longe e nos deixando no escuro. Literalmente e subjetivamente. O que estava acontecendo? Que maldito encontro foi esse? Ele queria nos ajudar? Ele era uma criatura aleatória? Nimb parecia brincar conosco.
Essas lembranças vieram à minha mente durante meu banho, dias depois, no Lago Allinthonarid. Depois disso, fomos dormir em um buraco que já havia sido o espaço de longas raízes de uma velha (talvez centenária) árvore. Nós estávamos preocupados com Elinia e Dorks. Pela manhã, ainda, eles haviam partido em busca de um círculo druídico. A jovem sabia que havia algo assim por ali e eu considerava bastante plausível. Afinal, ali era o único lugar intocado por Sckhar justamente por conta dos poderes da deusa da natureza. Deveria de haver, certamente, um local de adoração à deusa. Elinia partiu em busca destes druidas para melhor nos guiar sobre o que fazer, seja com a visão que tivemos do elemental, seja com alguma pista ou paradeiro dos pais de Patrick.

Eu apenas relaxei ao longo deste dia, pratiquei um pouco e me acostumei mais um pouco com a lança e a espada curta, além de ensinar um pouco à Blasco sobre acrobacias, cambalhotas e rolamentos. À noite, dormi como um bebê.

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