terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Diário de Aldred C. Maedoc III - Parte 14

Valag 1º, Weez, 1410 CE

Aqueles foram dias do que podemos chamar de aventuras clássicas. As histórias mais comuns sobre heróis aventureiros envolvem invasão a uma masmorra abandonada onde haveria algum tipo de mistério, provavelmente inimigos, vilões, monstros e coisas do tipo que ameaçam a vida das pessoas de bem.
Claro que havia variações dessa história, mas a estrutura era a mesma. Entrar num lugar, seja na montanha, no subterrâneo ou algo parecido. Enfrentar monstros, raças malignas ou vilões. Recolher seus tesouros e ainda pegar a recompensa do local que se sentia ameaçado pela presença inconveniente.
No nosso caso, a masmorra era um antigo salão de anões que viveram em Lamnor há incontáveis eras. O lugar tinha um valor histórico inestimável, inclusive achei dois livros de histórias anãs. Infelizmente não me eram úteis, já que não sabia ler naquela língua. Acabou ficando com Enora, a elfa clériga de Tanna-Toh que trouxe Blasco e eu à vida. Fazia parte do acordo de vinte porcento dos espólios como pagamento da nossa ressurreição. “Negócio de goblin”.

Descansamos lá mesmo, sabendo que não haveria inimigos. Recuperados, concentramos os milagres divinos e as canções de Castiel para recuperar nossos ferimentos. Depois, vasculhamos com afinco (e com demora) o lugar inteiro em busca itens mágicos, tesouros e, claro, um rubi da virtude.
Recolhemos quatro gemas valiosas. Nenhuma delas, infelizmente, era o rubi da virtude. Nem mesmo aquela que encontramos no dia anterior. Podia ver nos olhos de todos algum ar de decepção. Encontramos muitas moedas de cobre, de prata e algumas de ouro além das gemas. E também uma adaga de adamante, o metal mais duro do mundo conhecido. Ninguém queria usar a arma. Também havia alguns robes, vestes caricatas de mago. Nathaniel decidiu ficar com uma.
E encontramos um coração. Sim, um coração empalhado dentro de uma caixa protegida magicamente. Graças à magia de Nathaniel, pudemos abrir a caixa e retirar o conteúdo. O coração parecia pertencer a algum tipo de ritual de Allihanna. Elinia ficou com o objeto, mesmo que Drake tenha dito que tudo seria dividido e dialogado com Enora. Se ela quisesse obter o coração, seria dela. Elinia relutou e acabamos ficando num empasse que não foi resolvido imediatamente. Somente depois de sairmos do salão dos anões.
Ao sairmos, encontramos a mulher nua sobre o lago. A mesma mulher que eu soube depois havia trazido Elinia de volta à vida. Depois de algum diálogo, em que eu confesso não ter dado a mínima atenção, embasbacado pela nudez da tal Selena, Elinia entregou o coração a ela. Parecia que um trato de Allihanna estava sendo cumprido ali.
A viagem de volta, sobre cavalos magicamente conjurados por Nathaniel, foi até que rápida. Chegamos ao acampamento pela noite e logo conversamos com Enora sobre nosso sucesso em eliminar a ameaça do lugar. Ajudamos bastante os planos da Vingança Élfica, pelo menos. Para nós mesmos, foi um retumbante fracasso. Nossa missão, além de não ter avançado nada, andou para trás.
Dormimos para no dia seguinte conversamos sobre os espólios e decidir o que ficaria com Enora. A clériga de Tanna-Toh acabou sendo muito gente boa e permitiu que escolhêssemos o que significava vinte porcento dos nossos espólios. Poderíamos dar os livros a ela e mais alguma coisa, talvez.
Confesso que não prestei muita atenção nessas divisões. Drake assumiu a dianteira como um líder deve fazer e negociou tudo com alguma ajuda e conselhos de Castiel. O elfo parecia ter experiência com barganhas ou algo do tipo. Harel, cego, era um poço de rancor e mau humor. Gulsh também não se importava com as negociações. Blasco voltou até a dormir durante esse período, demonstrando seu interesse em participar da parte econômica da nossa missão.
Fiquei fitando os olhos dos meus companheiros, tentando entende-los mais um pouco. Eu sentia que os conhecia pouco, por mais que tenha dividido grande parte do meu tempo com eles. Quando você é aventureiro, você faz logo alianças rápidas com outros aventureiros e podem passar anos juntos enfrentando todo tipo de missão, mas não necessariamente se tornam amigos com quem convidam para tomar um vinho em casa ou visitar um teatro.
Meus companheiros eram colegas, não amigos. Eu não os conhecia direito. Eles pareciam que viveram a vida inteira apenas viajando, enfrentando missões. Não pareciam pessoas reais com desejos mundanos. Harel era quem eu menos conhecia. Até mesmo sabia algumas coisas de Gulsh, que era ferreiro, mas só. Castiel não tinha memória de grande parte da vida, parecia viver errantemente. Drake era de Zakharov, mas não sabia nada sobre sua família, se tinha sobrenome. Sabia apenas que tinha uma arma mágica referente. Elinia era também muito sisuda e já recusou qualquer conversa sobre o passado. Nathaniel era um homem muito velho, não o chamaria para “curtir”. Patrick estava bastante calado e pensativo nas últimas semanas, mas também não o conhecia direito. Sabia apenas que era um camponês em Pondsmânia e que agora era um feiticeiro que buscava os pais desaparecidos.
Victor, Blasco e eu éramos os mais próximos de amigos naquele grupo. Não sabia muito sobre seus respectivos passados também, mas com eles eu me divertia, falava besteira (provocando olhares reprovadores de Nathaniel e Drake, principalmente) e descontraía. Conhecia a personalidade de cada um e eram mais compatíveis com a minha. Eu os chamaria para assistir uma luta na Arena Imperial, ou a uma peça de teatro, ou mesmo convidaria à minha casa. O resto deles? Não mesmo, talvez por cordialidade. E eu era, e ainda sou, muito preguiçoso para cordialidades.
Por fim, a divisão dos espólios foi feita e acabei mesmo não ficando com os livros dos anões. Uma lástima, mas fiz questão de falar que, para um futuro trabalho acadêmico, gostaria de ser citado como o “arqueólogo” que encontrou as peças. Nada de relevante academicamente falando, mas fiz questão porque queria deixar minha marca em qualquer lugar que pudesse.
Eis que então, alguém comentou sobre Selena. E Enora ergueu as sobrancelhas. A história que ela nos contou nos deixou muito perturbados. Aparentemente, ela teve contato com outros elfos rebeldes do acampamento. E nenhum foi pacífico. Vi Castiel pondo a mão no queixo com um leve sorriso. Aparentemente, ele estava certo sobre alguma coisa que pensava.
A verdade mais simples é que fomos enganados.
Ao vermos uma elfa cheia de carapaças vermelhas (que se assemelhavam às de Drake) e com um olho bizarro saindo do umbigo (o que me fez quase vomitar todo meu desjejum), nós logo olhamos para Elinia. Aparentemente, a tal ressurreição tinha um preço. Selena, que agora sabíamos ter envolvimento com os lefeus, os demônios da Tormenta, a trouxe de volta a vida para justamente continuar na missão. Afinal, quem mais poderia entregar um coração de Allihanna, da floresta, para ela, se não uma druida? No fim, os pontos começaram a se ligar e pareceu tudo muito crível. O que levou Castiel a questionar tudo.
- Afinal, quem disse que estamos interpretando corretamente os designíos dos deuses? Pelo que sei, vocês escolheram o caminho “errôneo” no que tange a missão. Eu vim, juntamente com Gulsh, para atender ao chamado de Morion.
Drake relutava em acreditar que estivesse entendendo errado as mensagens. Para ele, eram todas diretas e simples. Era algo concreto. Como não era (e não sou) um homem tão temente assim, comecei a questionar também e pensar igual a Castiel. Era fato consumado que nossa vinda a Lamnor se demonstrou infrutífera. Nenhum rubi da virtude nas costas. Ajudamos a rebelião dos elfos, mas também ajudamos um ser corrompido pela Tormenta.
- Temos que ir atrás dela. – Disse Elinia.
E aí chegamos a conclusão que devíamos conversar em particular. Enora prontamente nos deixou mais a vontade quando saiu da tenda. Ficamos lá discutindo qual seria nosso próximo passo. Elinia, até onde sabíamos, podia estar com os dias contados como aquela pobre elfa com o olho bizarro no umbigo. Então, o que fazer?
Acabamos chegando a três caminhos:
1) Ir à Valkaria. Lá teríamos a possibilidade do acesso aos especialistas da área como Reynard. E, consequentemente, curá-la de uma possível corrupção.
2) Ir para Vila Questor e procurar alguém que sabia sobre isso. A viagem até Vila Questor duraria seis dias. Foi mais ou menos o tempo que levou para a elfa manifestar as primeiras carapaças da Tormenta. Teríamos um padrão comparativo, se Enora não tivesse dito que a corrupção poderia se manifestar de forma diferente dependendo da pessoa.
3) Ir atrás de Selena. Que logo foi descartado. Por mais que fizesse sentido dar porrada naquela que começou essa história, nosso adversário não seria tão simples assim. Capaz de ressuscitar alguém, ela deveria ter toda sorte de poder oculto (e terrível) que não poderíamos lidar.
Ficou decidido pelo mais pragmático. Nossa estada em Lamnor estava encerrada e isto era o ponto pacífico. Também tínhamos que tratar da cegueira de Harel (que Enora, apesar de ser capaz de ressuscitar alguém com pergaminho, não podia curar uma cegueira. Vai entender). Por isso, partimos no dia seguinte para Vila Questor com um navio providenciado pelos próprios rebeldes.
Era um navio simples que servia para levar e trazer mais rebeldes. Por isso, na nossa volta à Vila Questor, tínhamos pouca companhia. A viagem foi tranquila, mas demorou mais do que planejávamos. Sete dias depois, aportávamos no reino de Tyrondir.
Durante a viagem e, depois, na estalagem para o descanso, nós conversamos sobre o que faríamos. De novo, tudo parecia impessoal demais. Por mais que a ideia era ajudar Elinia e Harel, fazíamos porque nos sentíamos obrigados moralmente. Afinal, éramos um grupo de heróis, gente que luta para proteger quem precise. Mas não por que necessariamente éramos amigos, ou tínhamos laços fortes.
Eu mesmo fiquei pouco transtornado com a situação. Acredito que devo esse sentimento à própria ressurreição de Elinia. Explico: quando ela morreu, eu entrei em choque, em pane. Lutei mais desesperadamente em busca de vingança imediata. Mas, sequer tive tempo para pensar em um luto ou mesmo para sofrer e ela retornou à vida. Desse modo, acabei perdendo um pouco o sentido do valor da vida dos meus companheiros. Mesmo sabendo que ela voltou por um sórdido plano de Selena, ainda assim, ela voltou. Não digo que estava ignorando a possibilidade de perdemos Elinia novamente. Mas não era por nenhuma outra razão além do fato de me preocupar com qualquer pessoa que precise de ajuda. De algum modo, na minha cabeça, eu não tinha laços o suficiente para ficar tão preocupado a ponto de perder noites em claro. Pelo contrário, dormi muito na viagem até Vila Questor e houve uns dias em que eu sequer lembrava que ela estava possivelmente corrompida. Harel, então, sequer lembrava que existia. Cego, ele ficou mais reservado e calado ainda. Quando eu pensava no grupo, contando que éramos dez, eu sempre me esquecia dele. “Falta um. Quem é? Ah, é o Harel”.
Por fim, depois de vários dias sem nenhuma ação para exercitar os músculos, fomos atacados no meio da noite enquanto dormíamos na taverna.
Eram fadas, do tipo sprite. Do tipo que era mais conhecido pra mim, pois elas existiam aos montes em Valkaria. Criaturinhas de não mais de quinze centímetros, com asas de inseto. Algumas tinham antenas e olhos insetoides, outros tinham rosto de elfo. Um mini-elfo.
Mas eu conhecia sprites brincalhonas, risonhas e despreocupadas. Estas pareciam também brincar, de esconde-esconde, mas de uma forma mais mortal. Jogando raios púrpuras, derrubando a gente com magia de sono e atirando com flechas. Diminutas flechas, mas capazes de perfurar sua jugular. Eu mesmo não fui atingindo nenhuma vez, mas vi Victor tombar com um único golpe. Nunca tinha visto algo parecido antes. Ele até resistiu aos tiros do pistoleiro mercenário em Sckharshantallas. Na época, eu devia estar com muito sono para não reparar que o próprio Victor havia sido afetado pela magia sono...
O primeiro obstáculo nessa luta foi saber onde elas estavam. Castiel lançou uma magia de globo de luz, tal como Nathaniel fizera na masmorra. Espalhou pela rua (a batalha saiu pela rua). Algumas davam para ver, mas elas eram muito ardis e furtivas. Eu mesmo não vi todas elas em campo de batalha. Apenas umas três. E eu matei duas.
Subi no telhado de uma casa em frente à taverna quando vi uma delas por lá. Mas ela saiu e ficou planando a uma distancia segura. Para ela. Saltei dali mesmo e cortei seu braço fora. Ela já caiu fedendo. Mas minha queda ao chão foi tosca, cai de ombro, dei um mal jeito e pensei ter quebrado a clavícula. Um absurdo, pois eu conseguia me levantar e correr. Se tivesse mesmo quebrado, estaria chorando de dor no chão.
Novamente subi o telhado da casa, pois havia outra sprite escondida lá, só arremessando flechas em nós. Não prestei atenção no que os outros faziam, mas sei que Drake lutou de ceroulas. De novo.
Subi e matei a outra sprite. Depois, vi que havia uma fada parada, no telhado da taverna, portanto, longe demais para um único salto. Tinha que descer e subir lá. Ela estava paralisada, com cara de boba, graças à magia de Castiel. Ele tocava sua ocarina para mantê-la entretida.
Saltei dali mesmo e pisei em falso, torcendo o tornozelo. Achava que tinha fraturado a perna. Outro absurdo de uma mente de um jovem que acha que seus problemas são os maiores do mundo. Síndrome de protagonista.
Corri (ignorando a dor que nem era tanta) e subi até o telhado da taverna. Mas antes que eu pudesse me banhar com os pingos de sangue das criaturas, Elinia gritou para não matarmos mais. Tínhamos que deixar uma delas vivas para o interrogatório. Parei meu golpe no ar e tentei acertar com o cabo da katana. Ledo engano, meu golpe foi até ridículo. Nunca treinei técnicas que visassem poupar meu inimigo. Satoshi Yamada me ensinou a arte do kenjustu. A arte de matar com a katana. Depois de errar o golpe, Blasco surgiu do nada (havia esquecido dele, achava que sequer tinha acordado lá no quarto da estalagem onde dormíamos todos juntos) e derrubou a sprite.
- Gulsh, intimide-a. Pode fazer tudo que quiser, mas não a mate. – Ouvir essa frase não me deixaria intrigado se fosse proferida pelos lábios de Harel, o cego. Ou mesmo de Castiel, que é um elfo muito prático. Diabos, na raiva, até eu mesmo falaria algo assim. Mas Drake é diferente. O lefou é um paladino, por Valkaria! Um servo de um deus justo, honrado, além de tudo, bondoso. Fiquei de queixo caído quando ouvi essas palavras.
Refleti acerta do combate que acabamos de ter. Dei por mim imaginando como nós éramos muito violentos. Não que não tivéssemos motivos. Afinal, comemos o pão que Ragnar amassou durante esse tempo em que nós dez nos conhecemos e viajamos juntos. Não formando laços de amizade, fazendo missões por obrigação moral (deuses bondosos nos pediram uma missão, como recusar e manter seu coração e consciência limpa?) que estavam nos desgastando demais. O reflexo desse desgaste era a nossa violência. Era Drake, um paladino, pedir para o orc de quase três metros intimidar uma sprite de quinze centímetros.
A fada nos explicou (depois de intimidada!!!) que fazia parte de um bando mercenário (de sprites!!!) que tinha como objetivo raptar Patrick e levá-lo para Pondsmânia, onde um captor misterioso o queria por algum motivo desconhecido até para as mercenárias minúsculas. Foi aí que percebi a ausência do nosso feiticeiro ruivo. Ele havia desaparecido e eu sequer tinha notado. Eu estava tão entretido na luta que não percebi quando Patrick caiu desacordado e desapareceu subitamente em seguida.
- O que vamos fazer agora? Elinia ainda precisa passar por uma averiguação sobre sua infestação da Tormenta. E Harel precisa ser curado. Mas Patrick está desaparecido, raptado. O que fazer? – Perguntou Nathaniel, colocando na mesa nossas opções. Enquanto fazia isso, conjurou uma magia de sono e fez a sprite apagar lentamente.

A pergunta sobre o que faríamos, para onde seguiríamos, pairou no ar. Para mim estava muito claro que o nosso destino, mais do que nunca, tinha que ser Valkaria.

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