Valag
1º, Weez, 1410 CE
Aqueles foram dias do que
podemos chamar de aventuras clássicas. As histórias mais comuns sobre heróis
aventureiros envolvem invasão a uma masmorra abandonada onde haveria algum tipo
de mistério, provavelmente inimigos, vilões, monstros e coisas do tipo que
ameaçam a vida das pessoas de bem.
Claro que havia variações dessa
história, mas a estrutura era a mesma. Entrar num lugar, seja na montanha, no
subterrâneo ou algo parecido. Enfrentar monstros, raças malignas ou vilões.
Recolher seus tesouros e ainda pegar a recompensa do local que se sentia
ameaçado pela presença inconveniente.
No nosso caso, a masmorra era
um antigo salão de anões que viveram em Lamnor há incontáveis eras. O lugar
tinha um valor histórico inestimável, inclusive achei dois livros de histórias
anãs. Infelizmente não me eram úteis, já que não sabia ler naquela língua.
Acabou ficando com Enora, a elfa clériga de Tanna-Toh que trouxe Blasco e eu à
vida. Fazia parte do acordo de vinte porcento dos espólios como pagamento da
nossa ressurreição. “Negócio de goblin”.
Descansamos lá mesmo, sabendo
que não haveria inimigos. Recuperados, concentramos os milagres divinos e as
canções de Castiel para recuperar nossos ferimentos. Depois, vasculhamos com
afinco (e com demora) o lugar inteiro em busca itens mágicos, tesouros e,
claro, um rubi da virtude.
Recolhemos quatro gemas valiosas.
Nenhuma delas, infelizmente, era o rubi da virtude. Nem mesmo aquela que
encontramos no dia anterior. Podia ver nos olhos de todos algum ar de decepção.
Encontramos muitas moedas de cobre, de prata e algumas de ouro além das gemas.
E também uma adaga de adamante, o metal mais duro do mundo conhecido. Ninguém
queria usar a arma. Também havia alguns robes, vestes caricatas de mago.
Nathaniel decidiu ficar com uma.
E encontramos um coração. Sim,
um coração empalhado dentro de uma caixa protegida magicamente. Graças à magia
de Nathaniel, pudemos abrir a caixa e retirar o conteúdo. O coração parecia
pertencer a algum tipo de ritual de Allihanna. Elinia ficou com o objeto, mesmo
que Drake tenha dito que tudo seria dividido e dialogado com Enora. Se ela quisesse
obter o coração, seria dela. Elinia relutou e acabamos ficando num empasse que
não foi resolvido imediatamente. Somente depois de sairmos do salão dos anões.
Ao sairmos, encontramos a
mulher nua sobre o lago. A mesma mulher que eu soube depois havia trazido
Elinia de volta à vida. Depois de algum diálogo, em que eu confesso não ter
dado a mínima atenção, embasbacado pela nudez da tal Selena, Elinia entregou o
coração a ela. Parecia que um trato de Allihanna estava sendo cumprido ali.
A viagem de volta, sobre
cavalos magicamente conjurados por Nathaniel, foi até que rápida. Chegamos ao
acampamento pela noite e logo conversamos com Enora sobre nosso sucesso em
eliminar a ameaça do lugar. Ajudamos bastante os planos da Vingança Élfica,
pelo menos. Para nós mesmos, foi um retumbante fracasso. Nossa missão, além de
não ter avançado nada, andou para trás.
Dormimos para no dia seguinte
conversamos sobre os espólios e decidir o que ficaria com Enora. A clériga de
Tanna-Toh acabou sendo muito gente boa e permitiu que escolhêssemos o que
significava vinte porcento dos nossos espólios. Poderíamos dar os livros a ela
e mais alguma coisa, talvez.
Confesso que não prestei muita
atenção nessas divisões. Drake assumiu a dianteira como um líder deve fazer e
negociou tudo com alguma ajuda e conselhos de Castiel. O elfo parecia ter
experiência com barganhas ou algo do tipo. Harel, cego, era um poço de rancor e
mau humor. Gulsh também não se importava com as negociações. Blasco voltou até
a dormir durante esse período, demonstrando seu interesse em participar da
parte econômica da nossa missão.
Fiquei fitando os olhos dos
meus companheiros, tentando entende-los mais um pouco. Eu sentia que os
conhecia pouco, por mais que tenha dividido grande parte do meu tempo com eles.
Quando você é aventureiro, você faz logo alianças rápidas com outros
aventureiros e podem passar anos juntos enfrentando todo tipo de missão, mas
não necessariamente se tornam amigos com quem convidam para tomar um vinho em
casa ou visitar um teatro.
Meus companheiros eram colegas,
não amigos. Eu não os conhecia direito. Eles pareciam que viveram a vida
inteira apenas viajando, enfrentando missões. Não pareciam pessoas reais com
desejos mundanos. Harel era quem eu menos conhecia. Até mesmo sabia algumas
coisas de Gulsh, que era ferreiro, mas só. Castiel não tinha memória de grande
parte da vida, parecia viver errantemente. Drake era de Zakharov, mas não sabia
nada sobre sua família, se tinha sobrenome. Sabia apenas que tinha uma arma
mágica referente. Elinia era também muito sisuda e já recusou qualquer conversa
sobre o passado. Nathaniel era um homem muito velho, não o chamaria para
“curtir”. Patrick estava bastante calado e pensativo nas últimas semanas, mas
também não o conhecia direito. Sabia apenas que era um camponês em Pondsmânia e
que agora era um feiticeiro que buscava os pais desaparecidos.
Victor, Blasco e eu éramos os
mais próximos de amigos naquele grupo. Não sabia muito sobre seus respectivos
passados também, mas com eles eu me divertia, falava besteira (provocando
olhares reprovadores de Nathaniel e Drake, principalmente) e descontraía.
Conhecia a personalidade de cada um e eram mais compatíveis com a minha. Eu os
chamaria para assistir uma luta na Arena Imperial, ou a uma peça de teatro, ou
mesmo convidaria à minha casa. O resto deles? Não mesmo, talvez por
cordialidade. E eu era, e ainda sou, muito preguiçoso para cordialidades.
Por fim, a divisão dos espólios
foi feita e acabei mesmo não ficando com os livros dos anões. Uma lástima, mas
fiz questão de falar que, para um futuro trabalho acadêmico, gostaria de ser
citado como o “arqueólogo” que encontrou as peças. Nada de relevante
academicamente falando, mas fiz questão porque queria deixar minha marca em
qualquer lugar que pudesse.
Eis que então, alguém comentou
sobre Selena. E Enora ergueu as sobrancelhas. A história que ela nos contou nos
deixou muito perturbados. Aparentemente, ela teve contato com outros elfos
rebeldes do acampamento. E nenhum foi pacífico. Vi Castiel pondo a mão no
queixo com um leve sorriso. Aparentemente, ele estava certo sobre alguma coisa
que pensava.
A verdade mais simples é que
fomos enganados.
Ao vermos uma elfa cheia de
carapaças vermelhas (que se assemelhavam às de Drake) e com um olho bizarro
saindo do umbigo (o que me fez quase vomitar todo meu desjejum), nós logo
olhamos para Elinia. Aparentemente, a tal ressurreição tinha um preço. Selena,
que agora sabíamos ter envolvimento com os lefeus, os demônios da Tormenta, a
trouxe de volta a vida para justamente continuar na missão. Afinal, quem mais
poderia entregar um coração de Allihanna, da floresta, para ela, se não uma
druida? No fim, os pontos começaram a se ligar e pareceu tudo muito crível. O
que levou Castiel a questionar tudo.
- Afinal, quem disse que
estamos interpretando corretamente os designíos dos deuses? Pelo que sei, vocês
escolheram o caminho “errôneo” no que tange a missão. Eu vim, juntamente com
Gulsh, para atender ao chamado de Morion.
Drake relutava em acreditar que
estivesse entendendo errado as mensagens. Para ele, eram todas diretas e
simples. Era algo concreto. Como não era (e não sou) um homem tão temente
assim, comecei a questionar também e pensar igual a Castiel. Era fato consumado
que nossa vinda a Lamnor se demonstrou infrutífera. Nenhum rubi da virtude nas
costas. Ajudamos a rebelião dos elfos, mas também ajudamos um ser corrompido
pela Tormenta.
- Temos que ir atrás dela. –
Disse Elinia.
E aí chegamos a conclusão que
devíamos conversar em particular. Enora prontamente nos deixou mais a vontade
quando saiu da tenda. Ficamos lá discutindo qual seria nosso próximo passo.
Elinia, até onde sabíamos, podia estar com os dias contados como aquela pobre
elfa com o olho bizarro no umbigo. Então, o que fazer?
Acabamos chegando a três
caminhos:
1) Ir à Valkaria. Lá teríamos a
possibilidade do acesso aos especialistas da área como Reynard. E,
consequentemente, curá-la de uma possível corrupção.
2) Ir para Vila Questor e
procurar alguém que sabia sobre isso. A viagem até Vila Questor duraria seis
dias. Foi mais ou menos o tempo que levou para a elfa manifestar as primeiras
carapaças da Tormenta. Teríamos um padrão comparativo, se Enora não tivesse
dito que a corrupção poderia se manifestar de forma diferente dependendo da
pessoa.
3) Ir atrás de Selena. Que logo
foi descartado. Por mais que fizesse sentido dar porrada naquela que começou
essa história, nosso adversário não seria tão simples assim. Capaz de
ressuscitar alguém, ela deveria ter toda sorte de poder oculto (e terrível) que
não poderíamos lidar.
Ficou decidido pelo mais
pragmático. Nossa estada em Lamnor estava encerrada e isto era o ponto
pacífico. Também tínhamos que tratar da cegueira de Harel (que Enora, apesar de
ser capaz de ressuscitar alguém com pergaminho, não podia curar uma cegueira.
Vai entender). Por isso, partimos no dia seguinte para Vila Questor com um
navio providenciado pelos próprios rebeldes.
Era um navio simples que servia
para levar e trazer mais rebeldes. Por isso, na nossa volta à Vila Questor,
tínhamos pouca companhia. A viagem foi tranquila, mas demorou mais do que
planejávamos. Sete dias depois, aportávamos no reino de Tyrondir.
Durante a viagem e, depois, na
estalagem para o descanso, nós conversamos sobre o que faríamos. De novo, tudo
parecia impessoal demais. Por mais que a ideia era ajudar Elinia e Harel,
fazíamos porque nos sentíamos obrigados moralmente. Afinal, éramos um grupo de
heróis, gente que luta para proteger quem precise. Mas não por que
necessariamente éramos amigos, ou tínhamos laços fortes.
Eu mesmo fiquei pouco
transtornado com a situação. Acredito que devo esse sentimento à própria
ressurreição de Elinia. Explico: quando ela morreu, eu entrei em choque, em
pane. Lutei mais desesperadamente em busca de vingança imediata. Mas, sequer
tive tempo para pensar em um luto ou mesmo para sofrer e ela retornou à vida.
Desse modo, acabei perdendo um pouco o sentido do valor da vida dos meus
companheiros. Mesmo sabendo que ela voltou por um sórdido plano de Selena,
ainda assim, ela voltou. Não digo que estava ignorando a possibilidade de
perdemos Elinia novamente. Mas não era por nenhuma outra razão além do fato de
me preocupar com qualquer pessoa que precise de ajuda. De algum modo, na minha
cabeça, eu não tinha laços o suficiente para ficar tão preocupado a ponto de perder
noites em claro. Pelo contrário, dormi muito na viagem até Vila Questor e houve
uns dias em que eu sequer lembrava que ela estava possivelmente corrompida.
Harel, então, sequer lembrava que existia. Cego, ele ficou mais reservado e
calado ainda. Quando eu pensava no grupo, contando que éramos dez, eu sempre me
esquecia dele. “Falta um. Quem é? Ah, é o Harel”.
Por fim, depois de vários dias
sem nenhuma ação para exercitar os músculos, fomos atacados no meio da noite
enquanto dormíamos na taverna.
Eram fadas, do tipo sprite. Do
tipo que era mais conhecido pra mim, pois elas existiam aos montes em Valkaria.
Criaturinhas de não mais de quinze centímetros, com asas de inseto. Algumas
tinham antenas e olhos insetoides, outros tinham rosto de elfo. Um mini-elfo.
Mas eu conhecia sprites
brincalhonas, risonhas e despreocupadas. Estas pareciam também brincar, de
esconde-esconde, mas de uma forma mais mortal. Jogando raios púrpuras,
derrubando a gente com magia de sono e atirando com flechas. Diminutas flechas,
mas capazes de perfurar sua jugular. Eu mesmo não fui atingindo nenhuma vez,
mas vi Victor tombar com um único golpe. Nunca tinha visto algo parecido antes.
Ele até resistiu aos tiros do pistoleiro mercenário em Sckharshantallas. Na
época, eu devia estar com muito sono para não reparar que o próprio Victor
havia sido afetado pela magia sono...
O primeiro obstáculo nessa luta
foi saber onde elas estavam. Castiel lançou uma magia de globo de luz, tal como
Nathaniel fizera na masmorra. Espalhou pela rua (a batalha saiu pela rua).
Algumas davam para ver, mas elas eram muito ardis e furtivas. Eu mesmo não vi
todas elas em campo de batalha. Apenas umas três. E eu matei duas.
Subi no telhado de uma casa em
frente à taverna quando vi uma delas por lá. Mas ela saiu e ficou planando a
uma distancia segura. Para ela. Saltei dali mesmo e cortei seu braço fora. Ela
já caiu fedendo. Mas minha queda ao chão foi tosca, cai de ombro, dei um mal
jeito e pensei ter quebrado a clavícula. Um absurdo, pois eu conseguia me
levantar e correr. Se tivesse mesmo quebrado, estaria chorando de dor no chão.
Novamente subi o telhado da
casa, pois havia outra sprite escondida lá, só arremessando flechas em nós. Não
prestei atenção no que os outros faziam, mas sei que Drake lutou de ceroulas.
De novo.
Subi e matei a outra sprite.
Depois, vi que havia uma fada parada, no telhado da taverna, portanto, longe
demais para um único salto. Tinha que descer e subir lá. Ela estava paralisada,
com cara de boba, graças à magia de Castiel. Ele tocava sua ocarina para
mantê-la entretida.
Saltei dali mesmo e pisei em
falso, torcendo o tornozelo. Achava que tinha fraturado a perna. Outro absurdo
de uma mente de um jovem que acha que seus problemas são os maiores do mundo.
Síndrome de protagonista.
Corri (ignorando a dor que nem
era tanta) e subi até o telhado da taverna. Mas antes que eu pudesse me banhar
com os pingos de sangue das criaturas, Elinia gritou para não matarmos mais.
Tínhamos que deixar uma delas vivas para o interrogatório. Parei meu golpe no
ar e tentei acertar com o cabo da katana. Ledo engano, meu golpe foi até
ridículo. Nunca treinei técnicas que visassem poupar meu inimigo. Satoshi
Yamada me ensinou a arte do kenjustu. A arte de matar com a katana. Depois de
errar o golpe, Blasco surgiu do nada (havia esquecido dele, achava que sequer
tinha acordado lá no quarto da estalagem onde dormíamos todos juntos) e
derrubou a sprite.
- Gulsh, intimide-a. Pode fazer
tudo que quiser, mas não a mate. – Ouvir essa frase não me deixaria intrigado
se fosse proferida pelos lábios de Harel, o cego. Ou mesmo de Castiel, que é um
elfo muito prático. Diabos, na raiva, até eu mesmo falaria algo assim. Mas
Drake é diferente. O lefou é um paladino, por Valkaria! Um servo de um deus
justo, honrado, além de tudo, bondoso. Fiquei de queixo caído quando ouvi essas
palavras.
Refleti acerta do combate que
acabamos de ter. Dei por mim imaginando como nós éramos muito violentos. Não
que não tivéssemos motivos. Afinal, comemos o pão que Ragnar amassou durante
esse tempo em que nós dez nos conhecemos e viajamos juntos. Não formando laços
de amizade, fazendo missões por obrigação moral (deuses bondosos nos pediram
uma missão, como recusar e manter seu coração e consciência limpa?) que estavam
nos desgastando demais. O reflexo desse desgaste era a nossa violência. Era
Drake, um paladino, pedir para o orc de quase três metros intimidar uma sprite
de quinze centímetros.
A fada nos explicou (depois de
intimidada!!!) que fazia parte de um bando mercenário (de sprites!!!) que tinha
como objetivo raptar Patrick e levá-lo para Pondsmânia, onde um captor
misterioso o queria por algum motivo desconhecido até para as mercenárias minúsculas.
Foi aí que percebi a ausência do nosso feiticeiro ruivo. Ele havia desaparecido
e eu sequer tinha notado. Eu estava tão entretido na luta que não percebi
quando Patrick caiu desacordado e desapareceu subitamente em seguida.
- O que vamos fazer agora? Elinia
ainda precisa passar por uma averiguação sobre sua infestação da Tormenta. E
Harel precisa ser curado. Mas Patrick está desaparecido, raptado. O que fazer? –
Perguntou Nathaniel, colocando na mesa nossas opções. Enquanto fazia isso,
conjurou uma magia de sono e fez a sprite apagar lentamente.
A pergunta sobre o que
faríamos, para onde seguiríamos, pairou no ar. Para mim estava muito claro que
o nosso destino, mais do que nunca, tinha que ser Valkaria.
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