quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Diário de Aldred C. Maedoc III - Parte 1

Morag 8, Dantal, 1410 CE (Depende do Mestre).
Hoje foi o dia mais importante da minha vida.
Acordei numa bela manhã ensolarada em Valkaria, disposto a contar para meus pais que iria me enfiar numa taverna, arrumar um bando de desocupados como eu e partiria pelas estradas do Reinado em busca de confusão. Tudo bem, não era bem isso que eu planejava, mas era a ideia.
No café-da-manhã, contei tudo a eles. Não pude deixar de notar o sorriso no canto da boca de meu pai. Minha mãe arregalou os olhos, mas não disse nada, tentando esconder sua preocupação visível. Minha irmã disse um entediado “já era hora”. Meu pai se levantou e tocou no meu ombro e disse que se aquela era minha escolha de fato, iria apoiar. Minha mãe concordou com a cabeça, ainda em silêncio. Meu pai foi no quarto para me dar um presente, algo que ele disse que estava guardando para esse momento.

Enquanto isso, minha mãe começou a soltar um monte de palavras preocupadas, frases de recomendações sobre o que fazer. Eu já sabia de tudo aquilo, que não deveria dormir com fogueira acesa na estrada, a não ser que fizesse muito frio e, mesmo assim, era melhor se aquecer com uma manta do que com fogo, porque poderia atrair alguém ou alguma coisa. Falou para eu beber bastante água enquanto viajava, para me manter hidratado para que não faltassem forças na hora de lutar. Era importante comer pelo menos três vezes ao dia, não importando se isso fosse atrasar uma viagem. Sempre andar de dia e por estradas, se possível. Nunca se separar do grupo na hora da vigia do turno à noite. Nunca se separar dentro de uma masmorra. Nunca se separar das armas e da armadura.
Quando ela soube que eu não iria usar armaduras, pois prefiro me proteger com minha agilidade, confiança e corpo forte, ela quase teve um infarto. Nesse momento, meu pai retornou com uma belíssima katana, uma obra de arte forjada por Satoshi Yamada, um grande mestre armeiro tamuraniano, amigo do meu pai de longa data. De posse dessa arma, com um sorriso no rosto, eu falei:
- Estou pronto para ser um grande herói aventureiro.
Fui preparar minha mochila, mas no caminho, encontrei um livro aberto, no chão da sala de livros. O peguei e procurei seu lugar. Então, vi que algumas palavras estavam brilhando. Eu havia aprendido dracônico, por isso entendi o que aquelas letras brilhando em dourado diziam. Não sei o que passou na minha cabeça, mas senti vontade de ler.
Depois disso, senti a gravidade mais leve, o chão desaparecendo. Eu não tinha pegado minha mochila ainda, somente minha katana estava na cintura. Logo em seguida, fui pego num turbilhão de luz, onde senti um puxão no meu estômago. Então era assim que se sentia alguém sendo teletransportado? Só sei que quando dei por mim, estava num lugar totalmente diferente. Um lugar quente e seco.

Dia da semana número, mês, 1410 CE (Depende de quando consegui um pergaminho e tinta).
Só consegui achar esse material para escrever muito tempo depois de ser teletransportado de Valkaria para cá. Por isso, muita coisa que já aconteceu esvaneceu da minha mente. Entretanto, farei um grande esforço para relembrar da maioria das coisas. Tudo começou no dia 8 de Dantal, imediatamente depois do teletransporte.
A cidade onde me encontrei, entretanto, eu dificilmente esquecerei. Foi um marco, o primeiro momento de tensão da minha carreira de aventureiro. A vida de herói é assim mesmo, cheia de problemas, dificuldades e privações. Por isso, é natural se esquecer de alguns detalhes. Mas mesmo assim, o começo de tudo a gente nunca esquece. Quando eu começar a contar minhas histórias para meus filhos e netos, será através desse dia marcante.
O lugar era quente e seco. O chão de terra batida e construções pela metade, como se destruídas pelo fogo. O silêncio era sepulcral e a luz da lua em foice era minha única esperança de enxergar alguma coisa. Caminhei, observando as estruturas e teorizei que um exército passou por ali e tacou fogo em tudo.
Eu não podia estar mais errado.
Subitamente, vi um vulto passar no meu campo de visão. Olhei apreensivo e não vi nada, além da escuridão macabra. Caminhei mais um pouco e notei que algumas casas semidestruídas tinham alguma iluminação fixa. Veja bem, quando um aposento daquele tipo possui fonte de luz, geralmente se origina de tochas ou velas. E a luz emitida sempre seria bruxuleante. Não era o caso daquelas casas. Parecia uma iluminação das grandes lamparinas, somente vistas em grandes metrópoles como Valkaria. E certamente eu sabia que não estava em Valkaria.
Assustado, mas muito curioso e incapaz de conter meus pés, segui até uma dessas casas e pensei ter visto alguém. Falei um cumprimento em voz alta. Nenhuma resposta. Engasguei de ansiedade. Meus passos estavam cada vez mais incertos.
Vislumbrei um rosto novamente na minha visão periférica e virei o rosto rapidamente. Nada. De repente, ouvi um estrondo de porta de madeira se fechando com violência. Senti um frio na espinha e saquei minha katana virando meu corpo para a porta. Para notar, assombrado, que não havia porta. Ouvi um som lá fora. Decidi que ficar dentro dessas construções não parecia uma boa ideia.
Minha mãe era uma maga encantadora, especialista em controle da mente e de emoções. Ela havia me ensinado alguns truques para manter o controle da minha ansiedade, meu grande inimigo que provocava minha impulsividade. Porém, naquela situação, eu não conseguia lembrar as respirações, dos movimentos. Apenas queria encontrar alguma coisa, alguém. Naquele momento, eu teorizava estar sendo manipulado por alguém capaz de conjurar magias de ilusão. Agradeci meus estudos de magia na adolescência.
Eu não podia estar mais errado.
Súbito, chego a uma espécie de pracinha, uma encruzilhada de três ruas. Uma mulher parada. Ela era pálida, cabelos castanhos, roupas de pano como uma camponesa. Aproximei-me falando com serenidade, controlando o tom da minha voz cada vez mais trêmula. Nenhuma resposta. Ela olhava para minha direção, mas não para mim. Se a situação esquisita já não bastasse, eu notei que ela não tinha pernas.
Lembro-me de sentir fraqueza nas pernas e nos braços. Segurei firme a minha katana. Ela parecia um fantasma. Ela flutuava, terminava na borda de seu vestido. Atrás dela, mais um susto. Outra mulher. Mas esta interagia comigo, porque também tomou um susto com minha presença. Ignorado pelo fantasma, me dirigi à outra mulher que eu não via muito bem devido à penumbra.
Subitamente, o fantasma se mexeu. Ergueu os braços e inclinou o corpo pra trás, como se protegesse de uma ameaça vinda do céu. Olhei por desencargo de consciência e não vi nada. Ela abriu a boca em desespero e começou a sumir como se fosse pó. Assustado, me aproximei da outra mulher e tomei outro susto terrível.
Um troglodita, uma espécie de homem-lagarto, surgiu do nada. Malditos seres camaleônicos! Girei minha katana, segurando-a com as duas mãos, pronto para me defender. A fera arrepiou sua crista e mostrou seus dentes. Mas apenas rugiu e ficou do lado da mulher. Naquele momento notei um lobo também, mas ele estava silencioso. Aposto 10 mil tibares que sentia medo também.
Troquei algumas palavras com a mulher. Percebi que ela era uma espécie de selvagem, pois não sabia nomes de reinos e cidades. Ela dizia ter vindo de montanhas a leste. Pra mim, isso não significava nada. Notei que ela tinha um rosto muito bonito, traços finos e corpo delgado. Vestia uma mistura de roupa de pano com ganhos e folhas. Ela era muito bela, de verdade. Parecia uma filha da alta sociedade, mas sem maquiagem e mais primitiva. E era muito nova. Parecia ter a idade da minha irmã. Ou menos. Sua confusão era palpável e tinha alguns traços de irritação. O que realçava ainda mais sua beleza. Seu nome era Elinia. Depois de me apresentar, percebi que ela apresentou também o troglodita. Seu nome era Dorks, ou algo parecido. Ele não era capaz de falar nada e gesticulava para se comunicar, mesmo com a menina.
A beleza daquela menina, aquela fera exótica e aquele lobo me entretiveram razoavelmente, me fazendo esquecer um pouco daquela situação esquisita. Porém, começamos a ouvir barulho de chamas e madeira crepitando. Começamos a andar na direção oposta a que eu vim, buscando uma saída. Então, recebemos uma lufada de vento quente. Eu senti um bafo nas costas, como se estivesse perto de uma fornalha calcinante. O crepitar aumentou, mas não parecia vir de lugar algum. Entretanto, no meu campo de visão periférico, eu via as casas queimando. Com um olhar mais acurado, não conseguia ver nada. A situação não parava de ficar estranha. E perigosa.
Saímos correndo de lá. Mas um pouco antes, ainda pudemos ouvir um rugido, um sopro e a sensação de fogo aumentar. Depois, barulho de asas de couro pelo céu. Não sei se para eles era tão óbvio o que era pra mim. Eram asas de dragão. De um imenso, colossal, majestoso dragão. Novamente, agradeço meus estudos de magia. Sem eles, eu teria apostado em um morcego enorme.
Paramos nas imediações da cidade. Vimos que o fogo agora podia ser visto nitidamente. Eu engoli seco, notando que precisava beber água. Meus lábios estavam rachados. E amaldiçoei os deuses por ter deixado minha mochila com todos os meus equipamentos de aventureiro lá em casa, que eu não sabia onde era a direção.
Subitamente, o troglodita Dorks começou a correr, se afastando. Elinia se afastou mais lentamente, com seu lobo (na verdade, uma loba). Eu olhei mais afundo nas chamas, pois sentia curiosidade. Da cidade, surgiram criaturas humanoides. Com um olhar mais atento, eu vi que eles andavam capengando, com partes do corpo faltando e o rosto em decomposição.
Diabos! Eram mortos-vivos! Zumbis! Não sabia dizer qual o tipo, mas sabia que existiam tais criaturas. Mortos que voltavam a vida por terem deixado assuntos inacabados, condenados a percorrerem o mundo em busca de um vazio que jamais será preenchido. Notei que havia mais de cem. Outra lufada de vento quente me atingiu e eu senti como se fosse queimar. Notei que Elinia havia sumido na escuridão da noite. Sozinho, pensei que não seria útil lutar ali. Era desnecessário, não me daria nenhum ganho. Então, virei 180 graus e corri.
Esse dia foi mesmo muito esquisito. Depois, conversando com Elinia, descobri que Vectora, a cidade mercante voadora, estava passando por uma cidade ali próxima. Fiquei bem entusiasmado. Pensei em ir pra lá. Será que era Valkaria? Não poderia, o clima era muito diferente, era quente e seco demais. Talvez fosse um reino mais ao norte. Samburdia, talvez? A ideia de ser um reino tão a norte fez meu coração acelerar. Samburdia era conhecida como o final da civilização artoniana, mesmo sabendo que havia ainda Trebuck e Sckharshantallas a norte. As histórias se referiam a Samburdia como um lugar distante demais, muito difícil de chegar e com florestas lendárias. Apesar disso, não via muitas florestas por ali onde estava.
O que me fez desistir de ir em direção dessa cidade misteriosa era que Vectora já deveria ter ido embora há algum tempo. Sem muita escolha, preferi seguir Elinia e Dorks. E Luna, a loba. Essa criatura não parava de me observar. Ela era silenciosa e rosnava apenas quando eu aproximava minha mão. Ora, o que eu podia fazer? Tentei ser amigável com o animal. Aliás, com Dorks e com Elinia também.
Falar com um troglodita seria visto como algo bastante exótico em Valkaria. Eu gosto de coisas diferentes, afinal, eu sou um valkariano duelista que usa uma katana! Seria aquele “algo a mais”, o diferencial que eu buscava tanto. Mas Dorks não me entendia e se entediava com minhas falas. Já me deixou falando sozinho muitas vezes. Mas era um bom caçador e comi coelhos por muito tempo. Afinal, eu não tinha ração de viagem.
Elinia falava mais que Dorks, mas apenas um pouco mais. Muito sisuda, muito séria, a menina tinha uns 15, 16 anos e parecia carregar o peso de montanhas nas costas, tornando-a mais velha. A garota não queria falar sobre si mesma, me disse que os pais dela não me diziam respeito. Ora, é natural perguntar sobre os pais, não? Afinal, ela era praticamente uma adolescente no meio do nada vestindo trapos e na companhia de dois animais ferozes!
Foi quando eu percebi que ela era uma druida de Allihanna. Explicava tudo! Ela tinha dois companheiros animais. Piadas à parte, nós ficamos juntos por longos sete dias. Ela era muito bonita, realmente, mas era muito jovem para que eu iniciasse algum “movimento” para conquistar seu coração. Eu sou cerca de 7 ou 8 anos mais velho. Além do mais, ela se sentia incomodada quando eu falava muito. Ela era muito quieta, muito reservada. Aquilo era muito chato, na verdade. Teve um dia que o calor estava mais insuportável que os outros. Eu toquei em seu ombro para pedir o odre de água. Ela se afastou, como se me repulsasse. Oras, eu já não havia mostrado que era um cara legal? Que moça paranoica!
Desse modo, os sete dias se resumiam a acordar ao nascer do sol, comer coelho, beber água do odre dela ou cerveja de troglodita (que parecia água suja). Depois andávamos como se não houvesse o amanhã. Em silêncio. Por volta do meio dia, parávamos para comer coelho de novo. Aí eu tentava começar um diálogo, contando de onde eu era, quem eram meus pais (eles não conheciam Aldred C. Maedoc II e Therese Incarn, dois famosos ex-aventureiros do Protetorado, veja só!) e como eu teria parado lá. Eu perguntava mais sobre a região para tentar identificar onde estava, mas sem sucesso. Eu só ganhava respostas curtas e impacientes. Andávamos até o anoitecer. Dormíamos em turnos de vigia. Nas primeiras noites, Elinia não dormia no meu turno de vigia, pois não confiava em mim. Mas depois que viu que eu era confiável, passou a dormir. Ou talvez estivesse muito cansada de ficar acordada por noites em claro.
Sete dias depois, no dia 15 de Dantal, chegamos a uma cidade. E eu pude ver uma imensa estátua de um dragão. Ali que eu soube. Estávamos em Sckharshantallas. Enxuguei o suor da minha testa, nervoso com a descoberta.

Eu estava longe demais de casa...

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