Sentado em uma cadeira de pedra, no fundo de uma cela, um homem fita o vazio. Largado sobre cadeira tão inglória, trajando apenas uma faixa leve de pano branco. Rugas denunciam sua idade, seus alvos cabelos emprestam a ele uma aparência lúdica. E claro, asas. Alvas como a primeira neve de inverno.
Ali, em tão simples acomodação, jaz Henry, Clérigo de Thyatis. Um ponto de luz no alto da cela completa a magia da cena. Não fosse pela carrancuda face do homem, seria cena digna de um quadro.
Batidas na porta, pesadas, morosas. Uma voz anasalada grita o nome do visitante, ainda sem abrir a porta. Jeremiah. Henry nunca tinha ouvida falar desse. Recebia visitas constantes, mas esse era novidade.
- Bom dia padre.
As palvras de Henry atravessam o ar como adagas, assim que o jovem adentra os aposentos.
- Bom dia senhor... Sou Jeremiah Lingerwood, clérigo de Tana-Toh. Vim escrever sua vida.
Longos minutos de silêncio incômodo se fazem presentes. Enfim, o jovem se senta em um dos banquinhos de madeira dispostos no canto da sala. Eles pareciam muito usados. Tirando uma pena e sussurrando uma prece, ele dispõe folhas de pergaminho ao seu redor, no chão.
- Um homem circundado por palavras, pensa Henry. Muito saber, pouco poder.
- Podemos começar, diz um distante Jeremiah.
- Você quer iniciar do começo ou apenas aventuras, histórias de feitos?
- Do princípio de tudo, caso o senhor o conheça.
- Tudo bem então. Vamos começar do começo, ou melhor, de antes do começo.
Quando o homem começou a falar a face de Jeremiah talhou um sorriso. As palavras circundavam ao seu redor, soltas, voando através dele e se fixando no pergaminho. Adorava aquele truque. Quase sentia as palavras saindo da ponta da pena, quase era a tinta, mesclando-se às fibras macias, quase virava o dom da escrita. Era definitivamente o seu predileto, o ápice do conhecimento.
“Nasci aqui mesmo, na cidade de Tryumphus. A cidade da benção. A cidade da maldição. Como berço da fé em Thyatis, toda a minha vida foi pontuada por profecias, predições e adivinhações. E meu nascimento não foi diferente.
No momento da primeira visita de minha mãe ao templo, para ver se tudo corria bem, ela e meu pai foram “presenteados” com uma pequena fagulha do poder de Thyatis. Ao que minha mãe contava, foi mais ou menos assim:
Eles chegaram ao templo e quando recebidos pelo clérigo do local, o homem tocou a barriga de minha mãe e disse com olhos de fogo:
- A semente que cresce em seu ventre será fruto do Deus vivo, gerado por pais mortos. Conhecerá esse mundo, mas não será seu filho, matará e viverá por ele, mas em sua morte ele o abandonará. Trará o fogo e a luz, mas flertará com as trevas em seu caminho. Seu futuro será rubro e seu fim, dourado.
Minha mãe conta que ficaram perplexos e agradecidos por essa demonstração da presença da Fênix. Mesmo sem entender, saíram agradecidos sem ao menos saber se eu estava bem. Fé meu amigo move montanhas, mas não lê nas entrelinhas.
Aos três meses de gravidez e meus pais, que são meros artesãos, viviam felizes em sua rotina. Note que nem sobrenomes possuem tamanha nossa humildade. Indo ao centro velho para vender nossas mercadorias eles foram surpreendidos, como sempre acontece por aqui, por um arroubo do Moóck. Sim, não é uma lenda. O pássaro gigante de duas cabeças que cospe bolas de fogo. Confesso que é no mínimo estranho. Mas bem, continuando.
O desgraçado do pássaro estava com o pior humor dos últimos anos e devastou um terço da cidade. Sim, meus pais estavam entre os mortos. Mas como já deve ter notado, a maldição não me alcançou, o que me tocou foi algo maior.”
Um sorriso áspero cruzou a face de Henry por um segundo. Jeremiah pode vislumbrar um pouco do peso que aquele homem carregava. Repetindo a prece, ele continuou a ouvir a narrativa.
“Durante os meses que se seguiram, eu cresci demasiadamente para caber no ventre da minha mãe. Asas sabe? Elas não brotam magicamente, nascem com você, como os pássaros. Eu fui crescendo e crescendo e na noite do meu nascimento, minha mãe não andava haviam 2 meses. Eu era grande, pesado e muito incômodo. A parteira sabia a algum tempo que eu não nasceria pelos meios normais. Logo, tomaram a “via secundária”. Eles já haviam morrido, por isso a velha decidiu pelo banho de sangue. Alguns cortes na barriga de minha mãe e eu logo estava livre, chorando e ansiando minha mãe, como um pequeno falcão. Meu pai conta que eu fiquei quieto no colo dela até o fim. Não o fim, mas aquela morte. O sangramento fora demasiado e ela morreu me amamentando. Porém, graças à incrível benção, ela reviveu tempos depois.
Os anos se passaram e ser a atração, ser “a coisa”, era rotina pra mim. Mesmo sendo prestativo, mesmo ajudando a todos, mesmo tentando ser a melhor pessoa possível, esse título sempre me era negado. E eu nunca achei certo. Aos sete anos meus pais finalmente cederam aos pedidos do templo e me enviaram para aprender o exercício do sacerdócio. Eles jogaram baixo, disseram que eu era um enviado, uma criatura divina, que haviam profecias em meu nome e acontecimentos em minha honra. Além de, claro, pagarem aos meus pais pela minha “cessão”. Religião e seu lado podre. Tudo tem um lado podre.
Aos dezessete anos, fui sagrado sacerdote. Tardiamente pelos padrões, mas, como ícone e “galinha dos ovos de ouro”, ainda assim sagrado. Saí em penitência dois dias depois da cerimônia, ignorando convites e pedidos. Precisava me conhecer, conhecer o Deus que vivia em mim. Nunca duvidei da minha vocação, entenda isso. Mas precisava ver o meu Deus pelos meus olhos, não pelos livros ou pelos olhos dos outros.
Fiquei um ano longe, vivendo da terra e protegendo a terra. Lutando por mim e pelas pessoas que precisavam. Havia muita coisa errada no mundo e alguém devia fazer alguma coisa. Mover a primeira pedra. E assim o fiz, cacei criaturas vis, paguei por dívidas alheias, curei e salvei. O dom de Thyatis é vivo em mim e eu trouxe muitos de volta à vida. Sem jamais fechar os olhos aos males do mundo eu fiz e faço o que é certo, o que precisa ser feito. Existe mal aí fora, além desses muros. Um mal que supera a todos os outros, divinos ou arcanos, naturais ou mecânicos. Existe o homem – no sentido geral da palavra. Nada nesse mundo é capaz de ir tão baixo, nada pode fazer tanto pelo lado do mal. Somos o caminho que escolhemos e nosso potencial pra ambos os lados é infinito. Por isso eu ainda luto, por isso eu firo e sou ferido. Por Thyatis, pelo bem e por vocês.”
Com um suspiro Jeremiah levanta os olhos. Os anos amontoam-se em cada ruga, em cada dobra daquele homem de aço. Sim, ele está ansioso pelo resto da história. Ansioso pra saber os porquês e os comos. Conhecimento nunca é demais e todo poder vem do conhecimento.
Com um gesto, Henry o pede para ir embora. Se levantando e caminhando pela sala, ele vai até a tina e lava o rosto.
Ainda se olhando no espelho d’água ele fala, com uma voz serena:
- Sei que nos veremos novamente Jeremiah. Tana-Toh nunca sossega até saber tudo e eu desconfio que você é igual. Conversaremos mais no futuro, seja amanhã seja outro dia, se Thyatis assim quiser. Obrigado por ouvir, obrigado por saber.
- Sim, obrigado...
Ele iria saber tudo, sua Deusa iria saber tudo, a história iria saber tudo.
6 comentários:
Caralho! Perfeito! É o Daniel de asas! Ahahauauhahuahua
Bonito e bom. Vou fazer bom proveito. =D
po ficou irado... a ideia de ser contado e escrito por um clerigo...
=)
boas imagens tb
JESUSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
AMÉM
Josiel é meu pastor e nada me faltará.
Aldenor sem noçãoooooooooooooooo!!
ARGH! Escravo em tapista? Joselitoo
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